janeiro 22, 2014
Artigo: Triação de bens, por Jones Figueiredo Ales
A meação constitui a metade do acervo patrimonial atribuída ao cônjuge
ou companheiro em partilha dos bens adquiridos, que se efetiva ao tempo
da união desfeita. Mas quando se trate de duplicidade de células
familiares existentes por relações paralelas,
caso é o de a partição do patrimônio observar a ocorrência de entidades
familiares simultâneas. Na hipótese, a “meação” transmuda-se em
“triação”, ante o reconhecimento judicial das uniões dúplices, para os efeitos da partilha dos bens.
Neste sentido é a decisão unânime proferida pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça
de Pernambuco, onde em relatoria do desembargador JOSÉ FERNANDES DE
LEMOS, consagrou-se a possibilidade da triação, mormente que as duas
uniões afetivas foram mantidas pelo varão de maneira pública e
ostensiva, com o conhecimento recíproco das companheiras. (Apel. Cível
nº 296.862-5).
Expressou Fernandes de Lemos, em seu voto: “No caso em análise, há que se atentar para o fato evidente
de que, se o varão esteve no vértice de uma relação angular com duas
mulheres, duas casas e duas proles, preenchendo em ambos os núcleos o
papel de marido, de provedor e de pai, é que cultivava a compreensão
pessoal de que podia integrar duas famílias, e, no seu íntimo, nutria a
aberta intenção de fazê-lo”.
A questão posta em julgamento teve o desate meritório lúcido e pontual, com a precisão cirúrgica de quem admite que a vida,
por si mesma, produz o fato jurídico, antes que a própria lei o
expresse e o reconheça. Afirmou o relator, com a devida reflexão:
“Tais circunstâncias, se analisadas com
a devida isenção de ânimo, demonstram o caráter familiar da união
amorosa mantida pela autora-apelante,
que em nada se assemelha às relações clandestinas e furtivas, de
finalidade meramente libidinosa. Assim, configurando-se a formação de
autênticos núcleos familiares simultâneos, não há razão jurídica para
que se exclua um deles da tutela estatal, desmerecendo-o e relegando-o à
plena desconsideração, ou, quando muito, à tutela do direito
obrigacional.”
E ponderou: “Aliás, adotando-se a posição contrária, ou seja, a de que a duplicidade de relacionamentos afetivos acarreta a perda da affectio familiae e a quebra do dever de lealdade,
seria forçoso concluir que tal perda e tal quebra não se restringiriam a
uma das relações apenas, mas se estenderiam a todas. No caso dos autos,
considerando ilegítima a união afetiva da autora-apelante, teríamos de
admitir, por identidade de fundamentos, descaracterizada também a
relação do réu-apelado com sua outra companheira, ao menos durante o
período em que verificada a simultaneidade, o que nos conduziria ao
absurdo de, diante de duas famílias consolidadas no plano dos fatos, não
conferir o devido reconhecimento jurídico a nenhuma delas. Por outro
lado, tutelar apenas um dos relacionamentos, em desprezo do outro,
implicaria clara ofensa à isonomia, por conferir tratamento distinto a
situações substancialmente idênticas.”
Adiantou, ainda, FERNANDES LEMOS, que
“a decisão mais consentânea com o direito e com a justiça é a de
reconhecer, no caso concreto, os efeitos jurídicos das relações
paralelas de afeto, sob o manto do direito de família. Tal
posição, aliás, continua e avança na trilha construída pela nossa
jurisprudência, sempre preocupada em proteger os envolvidos em casos
como o dos autos, ainda que através da adaptação de institutos próprios
do direito obrigacional, a exemplo do direito à partilha do patrimônio
adquirido pelo esforço comum (Súmula nº 380 do STF) ou da indenização
por serviços domésticos prestados”. A decisão desafia recurso aos
tribunais superiores.
Não há negar, todavia, a “triação” dos
bens como fato jurídico de relevo, diante da realidade do direito de
família construído pela jurisprudência mais avançada.
A expressão “triação” foi cunhada em
decisão do des. Rui Portanova (2005), quando demonstrada a existência de
outra união estável em período concomitante a uma primeira união
estável. Admitiu-se, então, que os bens adquiridos na constância das
uniões dúplices fossem partilhados entre as companheiras e o “de cujus”.
(TJRS, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70011258605, j.em
25/08/2005). Naquele mesmo ano, o tribunal gaúcho já houvera reconhecido
efeitos jurídicos às uniões paralelas. (TJRS – 7ª Câmara Cível,
Apelação Cível nº 70010787398, Sétima Câmara Cível, Relator: Maria Berenice Dias, julgado em 27/04/2005).
Noutro ponto, convém assentar a
proclamação de Clicério Bezerra e Silva, Juiz de Direito da 1ª Vara de
Família do Recife, no pergaminho de sentença por ele proferida:
“(...) Segue-se o adiantar da hora pelo
pleno reconhecimento das uniões paralelas. A monogamia não pode ser e,
de fato, não é valor impeditivo ao reconhecimento de direitos. Fosse
assim, não se reconheceria a figura do casamento putativo, que, não
obstante a sua nulidade, produz efeitos jurídicos, nos termos do art.
1.561, do Código Civil”.
A propósito, nessa linha tem a doutrina
majoritária se posicionado, no sentido de quando preenchidos os
requisitos da união estável (ostentabilidade, publicidade, ânimo de
constituir família), e presente a boa-fé de um dos parceiros, serem
aplicáveis por analogia as regras do casamento putativo (cf. Álvaro
Villaça Azevedo, Flávio Tartuce, Francisco José Cahali, José Fernando
Simão, Rodrigo da Cunha Pereira e Zeno Veloso).
Para além disso, edifica-se uma nova
discussão sobre a natureza jurídica do concubinato (relações não
eventuais de pessoas impedidas de casar), referido pelo art. 1.727 do
Código Civil, a sabê-lo tipificado ou não na moldura de uma entidade
familiar (atípica), quando presentes os mesmos requisitos da união
estável e sob a égide do valor jurídico da afetividade (“affectio maritalis”). No ponto, “a jurisprudência do STJ e do STF é sólida em não reconhecer como união
estável a relação concubinária não eventual, simultânea ao casamento,
quando não estiver provada a separação de fato ou de direito do parceiro
casado”. (STJ – 4ª Turma, REsp. 1096539/RS, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, j. em 27/03/2012).
Certo é, porém, que tendo o núcleo
familiar contemporâneo por escopo a busca da realização dos seus
integrantes, vale dizer a busca da felicidade, (REsp 1157273/ RN) o
paralelismo de uniões afetivas (poliamorismo) deve ser encarado, no
plano existencial dos fatos, sob a égide de famílias consolidadas a
merecerem, umas e outras, a tutela estatal, como acentuou a decisão do
TJPE.
A pedra de toque da consolidação
concorrente, a toda evidência, atrai o reconhecimento de uniões estáveis
simultâneas e a devida proteção jurídica de ambas.
Assim, o direito não deve pretender juridicamente desconstituir fatos da vida que se sobrepõem iniludíveis.
JONES FIGUEIRÊDO ALVES – O autor
do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),
coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
AUTHOR:
Dimitre Soares
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