janeiro 22, 2014

Co-Parenting – Reflexões acerca do compartilhamento de paternidade ou maternidade, por Darwinn Harnack

Co-Parenting – Reflexões acerca do compartilhamento de paternidade ou maternidade

20/01/2014 Autor: Darwinn Harnack

Autor: Darwinn Harnack. Advogado. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí. Professor de Responsabilidade Civil, Direito das Obrigações e Direito das Famílias da Católica de Santa Catarina, desde 2001.
 
Resumo: Este estudo tem por objetivo contribuir para a elucidação dos contornos jurídicos que envolvem a formalização da coparentalidade voluntária oriunda da paternidade ou da maternidade constituídas sem a formação de vínculos conjugais. Para isso foi verificada a interdependência entre os vínculos de parentalidade e conjugalidade, analisada a presença dos requisitos formais do negócio jurídico nos contratos de compartilhamento de paternidade ou maternidade, além do conteúdo mínimo que deve permear as cláusulas desse contrato atípico e, por fim, a necessidade de superação de paradigmas a respeito do modelo tradicional de arranjo familiar, para o fim de serem acolhidas as novas propostas trazidas pelas emergentes transformações sociais.
 
Palavras-chave: Coparentalidade. Contrato. Arranjos familiares.
 
Abstract: This study has as objective the contribution in the elucidation of the forensic outline that implies in the formalization of the volunteer co-parenting resultant from the fathership or mothership constituted without connubial bonds. For this reason was verified the interdependence between the bonds of the parenthood and marital, analysed the presence of the formal requirements of the forensic deal in the sharing of the fathership and mothership. As well as the minimum context arranged that should permeate this atypical contract terms, and lastly the outstanding necessity of the surpassing the paradigms regarding the tradicional model of the familiar settling, with the aim of sheltering these new proposals brought by emerging social transformations.
 
Keywords: Co-parenting. Contract. Family arrangement.
 
1.   Considerações iniciais.
 
O tema deste breve estudo ainda é considerado novo no Brasil e a denominação dada a esse acordo de vontades para ter filhos sem a formação de laços de conjugalidade, pode sofrer variações até sua completa sedimentação.
 
Todavia, a figura denominada de “co-parenting”, ou seja, a celebração de contratos entre pessoas interessadas em ter um filho comum, sem, no entanto, obrigarem-se a manter relacionamento afetivo conjugal, já é um cenário concreto nos Estados Unidos, África do Sul, Alemanha e Reino Unido, por exemplo.
 
Diversas páginas de internet promovem a aproximação de pessoas com perfis semelhantes que comungam da vontade de compartilhar filhos, tais como Modamily.com, Pollentree.com, Coparents.co.uk, Coparenting.co.za, dentre outros.
 
Muito recentemente, no artigo “Nova Revolução na Constituição de Famílias” (CUNHA PEREIRA, 2013) restou didaticamente exposta a distinção e desconexão, dentro do âmbito familiar, das funções de parentalidade e de conjugalidade.
 
Essa autonomia entre as funções de parentalidade e de conjugalidade é bastante visível nas relações afetivas findas, ou seja, a presença de ex-cônjuges ou ex-companheiros que continuam exercendo os seus papeis familiares de pais e mães.
 
Pode-se dizer, inclusive, que a coparentalidade sem conjugalidade pode formar uma família parental ou duas famílias monoparentais, constituídas cada uma delas, nesta última hipótese, pelo ascendente masculino ou feminino com seu(s) filho(s).
 
É possível também imaginar a hipótese do casal que, já tendo ultrapassado a idade fértil, busca uma relação contratual dessa natureza com mulher fisicamente apta para a geração de filho. A coparentalidade, nesse caso, seria exercida pelos três contratantes em relação ao filho comum.
 
Afinal, se é verdade que pelo prisma jurídico a família pode ser caracterizada mesmo sem prole, do ponto de vista filosófico caracteriza-se a partir da filiação, como defende COMTE-SPONVILLE (2007, p. 50):
 
Um lar sem criança não é uma família, é um casal, ao passo que uma mãe solteira, que cria sozinha seus filhos é, evidentemente uma família. Dois adultos que criam uma criança são uma família. Um casal que abandona o seu filho não é. A família é a filiação aceita, assumida, cultivada: é a filiação segundo o espírito, e o devir-espírito da filiação.
 
Por essas razões revela-se oportuna e adequada a expressão “nova revolução”, utilizada por Rodrigo da Cunha Pereira para tratar dessa temática em seu articulado antes referido.
 
O compartilhamento de maternidade ou paternidade constitui elemento ou parcela componente dessa perspectiva de múltiplas possibilidades de arranjos familiares que estão sendo inseridos na sociedade, quer esta aceite ou não.
 
2.   Mudança de cenário.
 
Em um primeiro momento, pode-se imaginar que a decisão de procriar sem vínculo de afetividade com o outro genitor é algo que deve ser evitado, reprimido, ou ainda, que afronta o padrão de moralidade vigente.
 
No entanto, certas vezes é necessário um mergulho reflexivo mais cuidadoso, neste caso específico, para se compreender que a possibilidade de procriação não pressupõe, necessariamente, a existência de amor conjugal.
 
Afinal, são frequentes os filhos decorrentes de relações sexuais casuais, nas quais os genitores não planejavam desenvolver namoro, união estável e, muito menos, casamento.
 
Nesse tipo de filiação não planejada, é corriqueira a irresponsabilidade de um ou de ambos os genitores em relação ao filho e o consequente abandono, negligência de cuidados e desestruturação na formação e educação da criança.
 
De outra senda, no compartilhamento formal de paternidade ou maternidade, há toda uma regulamentação previamente aceita e livremente acordada a respeito dos cuidados com o filho, exercício da guarda, manutenção financeira, moral, afetiva e as responsabilidades por eventual descumprimento.
 
Não se trata de conduta antijurídica ou que ofenda os padrões morais, muito pelo contrário, desde que adequadamente estruturada, tal forma de constituição de família está albergada pelo princípio do livre planejamento familiar (artigo 226 § 7º da CRFB/88 e artigo 1565, §2º do Código Civil) e pode representar base tão sólida para a formação de novas gerações, quanto os arranjos mais tradicionais.
 
Também é importante notar que as famílias geradas a partir desse tipo de relacionamento contratual, não podem ser consideradas irregulares ou de segunda classe, pois gozam de proteção, reconhecimento e equiparação constitucionais.
 
É, portanto, necessário que se lance um olhar atento sobre esta realidade que, gradativamente, está se instalando em solo brasileiro e precisará ser adequadamente tratada pelos atores do mundo jurídico.
 
3.   A virtude da formalização do compartilhamento de paternidade ou maternidade.
 
A formalização das vontades comuns de partilhar a paternidade ou a maternidade deve ser estimulada, na medida em que os interesses dos filhos estarão mais preservados do que nas ditas “produções independentes” e informais.
 
Mais do que o interesse de quem pretende ter filhos, deve ser observado o interesse dos filhos gerados a partir desses acordos de vontades. Trata-se do atendimento aos princípios do melhor interesse e da proteção integral, que constituem o núcleo estruturante do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).
 
É óbvio que a falta de relação de conjugalidade entre os contratantes não exclui ou prejudica a afetividade da família que será formada por cada um dos contratantes com os filhos dela oriundos.
 
Este ponto não só é importante, como imprescindível, pois a característica marcante da família atual é, justamente, a afetividade, ou seja, o seu caráter eudemonista.
 
Perdido o laço de afetividade na relação de parentalidade, aí sim estaria dissolvida a figura da família, e o hipotético agrupamento formado por pessoas apenas biologicamente vinculadas poderia ter qualquer outra configuração ou denominação, exceto a familiar.
 
4.   Da presença dos requisitos formais de validade do negócio jurídico.
 
Parece estranho qualificar um contrato de compartilhamento de paternidade ou maternidade, como “negócio jurídico”, mas na esfera jurídica é dessa forma que deve ser classificado e, portanto, atender aos critérios de validade previstos no artigo 104 do Código Civil.
 
Aliás, se o próprio casamento civil é um “negócio de direito de família”, nos dizeres de DIAS (2013, p. 157), qual o problema de se qualificar o compartilhamento de paternidade ou maternidade como “negócio jurídico”? Com o passar do tempo, poderá também ser alçado, quem sabe, à condição específica de “negócio de direito de família”.
 
Porém, retomando a análise do artigo 104 do Código Civil, calha rememorar que este prevê que os negócios jurídicos, para serem considerados válidos, devem ser constituídos por agentes civilmente capazes, ter objeto lícito e atender à forma prescrita ou não vedada pela Lei.
 
No contrato de compartilhamento de paternidade ou maternidade, desde que celebrado por civilmente capazes, os demais requisitos de validade do negócio jurídico estão presentes, pois o objeto é lícito (geração de filhos) e, por se tratar de contrato atípico (sem previsão expressa na legislação civil), não há formalidade especial a ser observada.
 
5.   Sobre as estipulações contratuais.
 
É de rigor que em um contrato dessa natureza estejam muito bem especificadas todas as regras relacionadas ao exercício do Poder Familiar sobre o(s) filho(s) que dali se originarem, resguardas as normas de ordem pública que não podem ser objeto de flexibilização ou exclusão.
 
A guarda compartilhada (artigo 1584 do Código Civil) deve ser observada para que os laços de filiação sejam robustamente mantidos com ambos os genitores, juntamente com a previsão dos deveres de cada um dos genitores de prover os alimentos necessários ao(s) filho(s) comum(ns), as responsabilidades e alternativas em caso de perda do emprego, dificuldades financeiras imprevistas, necessidade de mudança de endereço, geração de outros filhos oriundos de relacionamentos informais ou contratos de compartilhamento diversos, cominação de astreintes por inadimplementos contratuais, dentre outros fatores que podem alterar a moldura inicialmente desejada pelos contratantes para o sadio desenvolvimento da prole.
 
Além desse conteúdo mínimo, cada contratante pode e deve expor seus anseios, preocupações e necessidades, que complementam e enriquecem esse pacto formal que, por sua peculiaridade, deve ser personalizado.
 
Importante observar ainda, que a inadimplência de deveres parentais poderá gerar, além das consequências legalmente estabelecidas no Código Civil, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei de Alienação Parental, também penalidades ou indenizações contratualmente avençadas em favor do contratante inocente, quer seja por ter sido obrigado a suportar sozinho algum ônus material que deveria ter sido compartilhado, quer em razão da geração de eventual dano extrapatrimonial decorrente de angústia, sofrimento ou abalo psicológico previstos como possíveis de serem cometidos pelas partes.
 
6.   Considerações finais.
 
Em tempos de “sociedade líquida”, para usar a expressão consagrada por BAUMAN (2011, p. 07-08), não há mais espaço para o medo da transformação, que é contínua, progressiva e dissolve dogmas obsoletos como neve ao sol.
 
Muitos são os que já não aceitam mais as antigas fórmulas de realização social arrastadas pelo senso comum e pela tradição, o que os faz buscar seus próprios caminhos, inventando ou reinventando felicidades individuais e familiares.
 
Toda vez que a família passa por transformações, surgem aqueles que lamentam pelo suposto fim dessa célula social, como se fosse possível suprimir um fato biológico indissociável do ser humano, gregário por sua própria natureza.
 
Nesse sentido, o escólio de DIAS (2013, p. 33) é exato quando destaca que “a família, apesar do que muitos dizem, não está em decadência. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais”.
 
Historicamente, as transformações sociais sempre geraram alterações nos padrões familiares, como é possível inferir, por exemplo, do clássico “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” (ENGELS, 1997), no qual são amplamente descritos os diversos modelos étnicos e temporais que caracterizaram a família, desde a sua formação tribal (consanguínea) até suas variantes evolutivas Punaluana, Sindiásmica, Monogâmica Matriarcal, Monogâmica Patriarcal e que hodiernamente se mostra, sobretudo, plural e acolhedora.
 
A progressão geométrica das transformações sociais tem gerado receios e inquietações a respeito da tomada de posições sobre o certo e o errado, conservação ou mudança, afinal o ser humano possui a tendência de temer o diferente, o desconhecido, aquilo que ainda está na penumbra.
 
No entanto, a boa notícia é que a possibilidade de compartilhamento formal de paternidade ou de maternidade não acabará com as famílias, pelo contrário, constituirá meio de geração de células parentais ou monoparentais mais responsáveis e conscientes de seus papeis sociais.
 
O tema ainda permite ricas investigações e divagações, tanto no campo jurídico como nos da axiologia, psicologia e bioética, de modo que este pequeno arrazoado, longe de pretender defender verdades, procura apenas contribuir com elementos e observações relevantes ao desenvolvimento das ideias que vem sendo trazidas pela comunidade jurídica.
 
Referências bibliográficas
 
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno; tradução Vera Pereira. Rio de Janeior: Zahar, 2011.
 
BERENICE DIAS, Maria. Manual de direito das famílias. 9 ed. Rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
 
COMTE-SPONVILLE, André. A vida humana; desenhos de Sylvie Thybert; tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
 
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Nova revolução na constituição de famílias. Brasil de Fato. São Paulo, 04 jun. 2013. Disponível em: < http://www.brasildefato.com.br/node/13111>. Acesso em 22 set. 2013.
 
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado; tradução de Leandro Konder. 14 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

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