agosto 31, 2020

Artigo - As duas eficácias das transações e dos acordos familiares - Por Jones Figueiredo Alves

 O negócio jurídico bilateral de transação de interesses (artigo 840, CC), realizado pelos transigentes na seara de ajustes preventivos ou de conflitos familiares intercorrentes, tem sua eficácia e validade independente de homologação judicial.

Outra eficácia será a de índole processual, quando para a extinção do processo judicial pendente os efeitos da transação dependerão do ato jurisdicional homologatório (artigo 842, in fine, CC). Mais precisamente: segundo o artigo 200, do CPC, que reproduziu o artigo 158, do CPC/73, em regra os atos processuais das partes não dependem de homologação judicial para que surtam efeitos, salvo a desistência da ação, que tem de ser homologada por sentença.

Consoante a melhor doutrina, pontificada no magistério de Flavio Tartuce, a transação “consiste no contrato pelo qual as partes pactuam a extinção de uma obrigação por meio de concessões mútuas ou recíprocas, o que também pode correr de forma preventiva”[1]. Lado outro, sem tais concessões, tratar-se-á, apenas, de “um mero acordo entre as partes”, desapartado da natureza jurídica da transação.

Entende Tartuce, porém, que a transação não deve alcançar alimentos, diante do rigor do artigo 840, CC, por supostamente envolver direitos patrimoniais, quando em sua opinião doutrinária os alimentos se acham mais vinculados aos direitos existenciais de personalidade.

Doutrina e jurisprudência convergem no sentido de uma dupla eficácia da transação existente, não necessariamente em tempo uno, muito embora alguns julgadores de primeira instância ainda admitam, de modo equívoco, uma eventual desistência da transação, quando então inexistente a sua homologação nos autos do processo.

O tema é recorrente, a ensejar, pela ensinança de Humberto Theodoro Júnior[2], as premissas de base seguintes:

(i) O arrependimento ou a renúncia unilateral é ato inoperante no processo em que se produziu a transação, mesmo antes da homologação judicial;

(ii) O só acordo de vontades entre os litigantes já é negócio jurídico perfeito e acabado no que lhes diz respeito;

(iii) A sentença não é condição essencial de sua validade, tanto que pode haver transação antes do ajuizamento da ação e, em tal hipótese, nenhuma necessidade há de sujeitar-se o negócio jurídico à aprovação da autoridade judiciária;

(iv) Se, após a transação, uma parte se arrependeu ou se julgou lesada, nova lide pode surgir em torno da eficácia do negócio transacional. Mas a lide primitiva já está extinta. Só em outro processo, portanto, será possível rescindir-se a transação por vício de consentimento.

Em menos palavras, há uma impossibilidade de desistência da transação na medida em que se trata de negócio jurídico perfeito e acabado, obrigando, em definitivo, os transatores, e sua rescisão, somente se faz cabível, nas hipóteses do artigo 849 do Código Civil, por via de ação própria.

A seu turno, a jurisprudência assim também orienta, e a reiteração de julgados faz evidenciar que, nada obstante a matéria se apresente incontroversa, as reincidências dos equívocos apontam sempre as situações recorrentes. Vejamos, suficiente:

“É impossível o arrependimento e rescisão unilateral da transação, ainda que não homologada de imediato pelo Juízo. Uma vez concluída a transação as suas cláusulas ou condições obrigam definitivamente os contraentes, e sua rescisão só se torna possível "por dolo, coação, ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa" (STJ – 3ª Turma, REsp 825.425/MT, Rel. Ministro Sidnei Beneti, j. em 18/05/2010, DJe 08/06/2010).

Em igual sentido: STJ, 7ª Turma, AC nº 0002810-32.2007.4.02.5101, Rel. Des. Fed. Min. Convocado Luiz Paulo da Silva Araújo Filho, DJe 11.5.2016; TRF-2 – 5ª Turma, Apel. Cível: 00238497619934025101 RJ 0023849-76.1993.4.02.5101, Rel. Des. Ricardo Perlingeiro, j. em 18/05/2018, publ. em 22/05/2018. Há mais tempo: STJ, 1ª Turma, AgRg no Resp nº 634.971, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJU 18.10.2004.

Recentemente, em situação parelha, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Pernambuco, no Agravo de Instrumento de nº 0004326-57.2019.8.17.9000, sob a relatoria do des. Eurico Barros Correia Filho, decidiu no sentido de:

(i) desconstituir a decisão do juízo a quo, que considerou ser possível a desistência do acerto dos transatores a qualquer tempo antes da respectiva homologação; (ii) indeferir o pedido de desistência da transação; (iii) quanto ao pleito de alteração do valor acordado a título de pensão alimentícia, a sua revisão ser buscada através do meio processual cabível; e  (iv)  homologar a referida transação, com efeitos retroativos à data de sua assinatura e, de consequência, a averbação do divórcio no respectivo registro civil do casamento.

Essa retroatividade, referida no aludido julgado, é ponto decisivo ao império do ajuste das partes que transacionaram os interesses, para além da própria ação originária de oferta de alimentos.

No mais importante, como deve ser, o julgamento conferiu a necessária segurança jurídica à transação então realizada, como contrato bilateral, oneroso, consensual e comutativo, e que teve como objeto direitos obrigacionais, de cunho patrimonial e de caráter privado (artigo 841, CC).

Induvidoso, tal como sucede nos acordos familiares sob a égide da Lei nº 11.441/2007, de 04 de janeiro, onde em escritura pública, tem-se a realização, por via administrativa, de inventário, partilha, separação consensual, de divórcio consensual ou ainda da extinção consensual de união estável. E a escritura não depende de homologação judicial, constituindo título hábil para “qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras” (artigo 733, do CPC/2015). Nessa ordem, tem sido também a transação, em vista de processo judicial existente, que servirá como título hábil sem depender da homologação.

De fato, ainda sob a doutrina de Humberto Theodoro Jr., impõe-se assinalar que:

“a homologação é, pois, ato jurisdicional dotado, também, de dupla eficácia, já que a um só tempo, põe fim à relação processual em curso, e outorga ao ato negocial das partes a qualidade de ato processual, com aptidão para gerar a res iudicata e o título executivo judicial, conforme a natureza do acordo” (artigo 269, nº III, do CPC/73; atual artigo 487, III, “b”, CPC/2015).

Mas não é só. Questões outras subjacentes servem também contribuir, com relevância, ao presente tema, exemplificando:

(i) A saber da transação possível, nos casos de direitos disponíveis e concluída que se encontre, tenha-se, então, a hipótese de desconhecimento da existência de trânsito em julgado da sentença de mérito, onde restara judicializada a controvérsia das partes.

Tal é a disposição do artigo 850, CC: “É nula a transação a respeito do litígio decidido por sentença passada em julgado, se dela não tinha ciência algum dos transatores, (...)”.

Na referida hipótese, a nulidade da transação por vício de vontade de um dos transatores terá, contudo, de ser alegada em ação própria. Assim pronunciou-se a 2ª Turma do STJ, no AgRgRD no REsp. nº 1057402-BA[3].

(ii) Em outro viés, a saber do instrumento transacional que não se apresenta, de logo, exibido ao processo judicial, quando em vizinhanças de uma próxima sentença que, afinal, venha de ser proferida exatamente em favor daquele transator, que sonegara ao juízo a transação já ocorrente.

Em casos que tais, há de se entender que a transação realizada opera, de logo, os seus efeitos jurídicos, importando dizer prejudicada a sentença adveniente, certo que o processo judicial já alcançara o seu fim com a transação feita, implicando na perda superveniente do objeto da demanda.

(iii) Em situação outra, retenha-se também a hipótese de um reconhecimento jurídico do pedido, como fenômeno processual extraído de uma transação.

Conforme bem anotado no julgamento dos EDcl nos EDcl no REsp 1317749/SP, “o reconhecimento da procedência do pedido é irretratável e produz efeitos imediatos. Posterior arrependimento da parte em razão de acordo não aperfeiçoado não torna ineficaz o reconhecimento que livremente manifestou”[4].

(iv) Latitude também paradigmática também se apresentou em julgado unânime proferido pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em maio de 2013, quando denegou-se Habeas Corpus em face de obrigações alimentares insatisfeitas. Nelas foram consideradas incluídas as despesas de custeio advenientes de eventual cirurgia de filho menor.

É que no curso de execução de dívida alimentar, cláusula de acordo estabeleceu previsão de despesas “em caso de doença do filho que necessite da compra de medicamentos”. O relator, ministro Villas Bôas Cuevas, referiu com irretocável regra de experiência máxima, que a referida cláusula de assistência à saúde dos filhos, como inserida no acordo, não pode ser interpretada restritivamente, porquanto quem assume percentual de despesas com medicamentos, “por muito mais razão deve arcar também com o pagamento percentual de despesas decorrentes de cirurgia de urgência”.

Tenha-se, portanto, em definitivo, o axioma certo do STJ a orientar:

“Efetuada e concluída a transação, é vedado a um dos transatores a rescisão unilateral, como também é obrigado o juiz a homologar o negócio jurídico, desde que não esteja contaminado por defeito insanável (objeto ilícito, incapacidade das partes ou irregularidade do ato)[5]”.

02. Questões outras remetem-nos à gestão dos interesses comuns da entidade familiar, onde sem dissensos e sem processo judicial pendente, as partes operam acordos familiares, com liberdade e autonomia privada. Exemplo mais eloquente é o do divórcio administrativo, introduzido pela Lei nº 11.441/2007.

Em outro giro, tem-se a regra do artigo 1.589, 1ª parte, do Código Civil, onde o casal parental acorda no tocante ao direito de visitação e/ou o de companhia temporária por aquele genitor em cuja guarda não estejam os filhos.

Entenda-se que esse acordo, devidamente instrumentado por meios admissíveis, independe de homologação judicial, cabendo a intervenção judicial apenas quando no atinente à quebra do ajuste ou embaraços outros (artigo 1.589, 2ª parte, CC). Tudo recomenda e antes aconselha, porém, que a guarda, unilateral ou compartilhada, quando disciplinada e regulada por consenso, seja requerida ao juiz de família, na forma do inciso I do artigo 1.584, do Código Civil, conforme redação dada pela Lei nº 11.698/2008.

Também vale referir a acordos familiares, ocorrentes sem a ruptura da vida em comum, a exemplo da convergência de interesses quanto (i) à inseminação artificial heteróloga (artigo 1.597, V, CC); (ii) ao exercício do poder familiar (artigo 1.631, CC), (iii) à alteração do regime patrimonial de bens (artigo 1.639, § 2º, Código Civil; artigo 734. CPC) ou aos pactos pós-nupciais, v.g. quando alterado o regime por decisão judicial, onde restará necessária ou não escritura pública para disciplinar o exercício do novo regime.

Pois bem:

(i) a prévia autorização marital para a inseminação artificial heteróloga (inseminação com sémen de dador) compreende um acordo de interesses (livre, esclarecido e responsável) das partes, que não precisa observar forma solene; apenas a concordância por escrito do cônjuge ou do convivente. A propósito, alude Eliane Barros que o consenso pode ser revogado e, no ponto, sublinha: “a revogação para ser eficaz deve ocorrer antes de realizada a técnica que permite a concepção. Ocorrida a concepção, decai o marido ou o companheiro da faculdade de revogar a autorização. A revogação depois da concepção é tardia e ineficaz[6]”. De fato, a primeira eficácia estará hígida, a da paternidade ficta.

Anota-se um pormenor: se o filho não nasceu da inseminação artificial para a qual o consentimento foi prestado, admite-se seja a paternidade impugnada, tal como é prevista em Portugal, pela Lei nº 32/2006, de 26 de julho (artigo 20, ítem 5, parte final) (08).

(ii) quanto ao exercício do poder familiar (artigo 1.631, CC), impende considerar que somente quando em ulterior divergência ao informalmente ajustado ou por manifesto dissenso nas deliberações do exercício comum, assegura-se a qualquer um dos pais recorrer ao juízo de família para a solução do desacordo (artigo 1.631, § único, CC).

Um dissenso tem sido flagrantemente observado, no atual momento da pandemia da Covid19, conforme relata Maria Carla Moutinho Nery, quando divergem os pais acerca do retorno dos filhos às aulas presenciais, no sistema híbrido com o ensino à distância (EAD).

No tocante aos pactos pós-nupciais, importa referir ao emprego do artigo 1.639, § 2º, Código Civil, em sua exata e devida configuração: a) cuida-se de uma mera autorização judicial para efeito de as partes, por consenso, definirem o novo regime por escritura pública ou b) a própria decisão judicial será exauriente em definição do regime patrimonial substitutivo. O tema, por certo, exige um estudo específico.

Enfim, o jurista não poderá quedar-se inerte diante de novas configurações da autonomia privada, cabendo-lhe preencher determinadas lacunas.

Transação e acordo são faces de uma mesma moeda consensual e representam, antes de mais, a concórdia que une pessoas nos seus interesses familiares, mesmo que separadas estejam.


[1] (01) TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil, Vol. Único. São Paulo: GEN/Ed. Método, 10ª ed., 2020, 1.616 p.; pp. 815-819;

[2] (02) THEODOR JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil, vol. I, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 11ª ed., 1994, pp. 320/321;

[3] (03) STJ – 2ª Turma, AgRgRD no REsp 1057402/BA, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 24.3.2009, DJe 23.4.2009;

[4] STJ – 3ª Turma, EDcl nos EDcl no REsp 1317749/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. em 04.09.2014. Ali discutia-se a possibilidade de desistência de anterior reconhecimento jurídico do pedido autoral, pela parte ré, inserido em cláusula de acordo submetido ao juízo e o qual ainda não fora homologado pelo julgador.

[5] STJ – 3ª turma, REsp 650.795/SP, Rel. Ministra Nancy Andrigui, julgado em 07/06/2005, DJ 15/08/2005.

[6] BARROS, Alieane Oliveira. Aspectos Jurídicos da Inseminação artificial heteróloga. Belo mHorizonte: Editora Fórum, 2010, 128 p.

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 é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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