Matéria da Revista Época trata das pensões pagas a filhas que disfarçam casamentos e uniões estáveis para não perderem o benefício
Era um sábado nublado. No dia 10 de novembro de 1990, a dentista Márcia
Machado Brandão Couto cobriu-se de véu, grinalda e vestido de noiva
branco com mangas bufantes para se unir a João Batista Vasconcelos. A
celebração ocorreu na igreja Nossa Senhora do Brasil, no bucólico bairro
carioca da Urca. A recepção, num clube próximo dali, reuniu 200
convidados. No ano seguinte, o casal teve seu primeiro filho. O segundo
menino nasceu em 1993. Para os convidados do casamento, sua família e a
Igreja Católica, Márcia era desde então uma mulher casada. Para o Estado
do Rio de Janeiro,
não. Até hoje, Márcia Machado Brandão Couto recebe do Estado duas
pensões como “filha solteira maior”, no total de R$ 43 mil mensais. Um
dos benefícios é pago pela Rioprevidência, o órgão previdenciário
fluminense. O outro vem do Fundo Especial do Tribunal de Justiça. A
razão dos pagamentos? Márcia é filha do desembargador José Erasmo Couto,
que morreu oito anos antes da festa de casamento na Urca.
Os vultosos benefícios de Márcia chegaram a ser cancelados por uma
juíza, a pedido da Rioprevidência. Ela conseguiu recuperá-los no
Tribunal de Justiça do Rio, onde seu pai atuou por muitos anos. O
excêntrico caso está longe de ser exceção no país. Um levantamento
inédito feito por ÉPOCA revela que pensões para filhas solteiras de
funcionários públicos mortos custam ao menos R$ 4,35 bilhões por ano à
União e aos Estados brasileiros. Esse valor, correspondente a 139.402
mulheres, supera o orçamento anual de 20 capitais do país – como
Salvador, Bahia, e Recife, Pernambuco.
Ao longo de três meses, ÉPOCA consultou o Ministério do Planejamento e
os órgãos de Previdência estaduais para apurar os valores pagos, o
número de pensionistas e a legislação. Ao menos 14 Estados confirmaram
pagar rendimentos remanescentes para filhas solteiras, embora todos já
tenham mudado a lei para que não haja novos benefícios. Hoje, as pensões
por morte são dadas a filhos de ambos os sexos até a maioridade e, por
vezes, até os 24 anos, se frequentarem faculdade. Santa Catarina, Amapá,
Roraima, Tocantins e Mato Grosso do Sul informaram não ter mais nenhum
caso. Distrito Federal, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Rondônia e
Piauí deram informações incompletas ou não forneceram a quantidade de
pensionistas e o valor gasto. ÉPOCA não conseguiu contato com a Paraíba.
É provável, portanto, que os números sejam superiores aos 139.402
apurados e aos R$ 4,35 bilhões.
Oriunda de uma época em que as mulheres não trabalhavam e dependiam do
pai ou do marido, a pensão para filhas solteiras maiores de 21 anos
pretendia não deixar desassistidas filhas de servidores mortos. Hoje, a
medida dá margem a situações como a de Márcia e a diversas fraudes. Para
ter o direito, a mulher não pode se casar ou viver em união estável.
Para driblar a lei e seguir recebendo os benefícios, muitas se casam na
prática. Moram com o marido, têm filhos, mas não registram a união
oficialmente. O governo federal concentra 76.336 casos. Isso corresponde
a 55% dos benefícios do país, só entre filhas de servidores civis
mortos até dezembro de 1990. Os militares da União descontam mensalmente
1,5% do salário para deixar pensão para as filhas. O custo anual aos
cofres federais é de R$ 2,8 bilhões. Segundo o Ministério do
Planejamento, trata-se de direito adquirido. O total diminuiu 12% desde
2008. Houve 3.131 mortes, 1.555 mudanças de estado civil, e 1.106
assumiram cargo público – pela lei federal, motivo de perda. As
“renúncias espontâneas” foram apenas 518. O governo afirma que “as
exclusões decorrem do trabalho de qualificação contínua da base de dados
de pessoal” e que a busca por inconsistências na folha é permanente. A
partir de 2014, a Pasta centralizará a lista de pensionistas filhas
solteiras, hoje dispersas.
O Rio de Janeiro, antiga capital do país, é o Estado com mais casos:
30.239, a um custo anual de R$ 567 milhões, um terço dos benefícios da
Rioprevidência. Em São Paulo, 15.551 mulheres consomem R$ 451,7 milhões
por ano. As pensões paulistas custam, em média, R$ 2.234, quase o dobro
das fluminenses. Valem para mortes até 1992 para civis (4.643), e até
1998 para militares estaduais (10.908). Segundo a São Paulo Previdência
(SPPrev), há recadastramento anual obrigatório para identificar
irregularidades. “Pensionistas que mantêm união estável e não a informam
à autarquia praticam fraude, estão sujeitas à perda do benefício e a
procedimentos administrativos e podem ter de ressarcir os valores”,
informou a SPPrev.
Uma das pensões polêmicas pagas por São Paulo, a contragosto, vai para a
atriz Maitê Proença. Seu pai, o procurador de Justiça Eduardo Gallo,
morreu em 1989. Maitê recebe cerca de R$ 13 mil, metade da pensão,
dividida com a viúva. Em 1990, Maitê teve a filha Maria Proença Marinho,
com o empresário Paulo Marinho, com quem teve um relacionamento por 12
anos, não registrado. A SPPrev cortara o benefício, sob a alegação de
que a atriz vivera em união estável. Maitê recorreu, obteve sentenças
favoráveis em primeiro grau e no Tribunal de Justiça. Mantém a pensão,
ainda em disputa. Segundo seu advogado, Rafael Campos, Maitê “nunca foi
casada nem teve união estável” com Marinho, e a revisão do ato de
concessão da pensão já estava prescrita quando houve o corte. “O poder
público não pode rever seus atos a qualquer momento, senão viveremos
numa profunda insegurança jurídica”, diz.
O Rio Grande do Sul paga 11.842 pensões para filhas solteiras, ao custo
de R$ 319,5 milhões, média de R$ 2.075 mensais cada. Depois, vêm Paraná
(1.703 e R$ 92,5 milhões anuais); Minas Gerais, com 2.314 casos, e
gastos de R$ 67 milhões por ano; Sergipe (571, R$ 19,3 milhões), Pará
(276), Mato Grosso (198), Bahia (163), Acre (123), Amazonas (31),
Maranhão (21), Pernambuco e Espírito Santo (ambos com 17 cada).
O Maranhão paga as maiores pensões entre os Estados brasileiros – R$
12.084 mensais, em média. Segundo o órgão previdenciário maranhense,
todas são pagas a filhas de magistrados e integrantes do Tribunal de
Contas do Estado. Amazonas, com benefícios médios de R$ 7.755, e Acre,
com R$ 6.798, aparecem em seguida. Por todo o país, há mulheres com três
ou quatro filhos do mesmo homem que dizem jamais ter vivido em união
estável. “Tenho sete filhos com o mesmo pai, mas só namorava”, diz uma
pensionista do Rio. Situação semelhante é vivida pela advogada Tereza
Cristina Gavinho, filha de delegado de polícia (salário aproximado de R$
20 mil), cuja pensão foi cortada, mas devolvida após decisão da
Justiça. De acordo com a Rioprevidência, há “sérios indícios de omissão
dolosa do casamento/convivência marital com o sr. Marcelo Britto
Ferreira, com o qual tem três filhos!!!”. Tereza nega ter vivido com
ele. Algumas explicações são curiosas. “O pai dos meus filhos é meu
vizinho e é casado”, diz uma mulher no Rio. “Não posso ter união estável
porque sou homossexual”, afirma outra. A maioria das fraudes é
constatada após denúncias de parentes, geralmente por vingança. “A parte
mais sensível do ser humano é o bolso, e aí não tem fraternidade nem
relação maternal”, afirma Gustavo Barbosa, presidente da Rioprevidência.
A dentista Márcia, alvo de uma ação popular que inclui fotos de seu
casamento, nega ter se casado. Numa ação para obter pensão alimentícia
para os filhos, afirma, porém, que “viveu maritalmente com João Batista,
sobrevindo dessa relação a concepção dos suplicantes (filhos)”.
Seu advogado, José Roberto de Castro Neves, diz que a cerimônia
religiosa foi “como um teatro, ela era de uma família tradicional, mãe
religiosa e pai desembargador, então ela fez essa mise-en-scène”. Márcia
não trabalha como dentista. Vive dos benefícios. Para a
Procuradoria-Geral do Rio, tal pensão gera “parasitismo social” – por
contar com a pensão, o cidadão deixa de produzir para a sociedade. Em
2011, o Rio passou a exigir a assinatura de termo em que as pensionistas
declaram, “sob as penas da lei”, se vivem ou viveram “desde a
habilitação como pensionista, em relação de matrimônio ou de união
estável com cônjuge ou companheiro”. A Rioprevidência hoje corta a
pensão de quem reconhece casamento, recusa-se a assinar ou falta, após
processo administrativo. A partir da medida, 3.140 pensões foram
canceladas, uma economia anual de R$ 100 milhões.
Até os advogados de Márcia e Maitê reconhecem a necessidade de combater
irregularidades e abusos. “O risco é tratar os casos sem analisar as
peculiaridades. Evidentemente, há abusos que devem ser coibidos”, diz
Castro Neves, advogado de Márcia. O maior risco, na verdade, é o Brasil
seguir como um país de privilégios mantidos pelo contribuinte.
Tahels Garrido da UFRN, mandou o link deste texto interessante ( http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI91736-15228-1,00-FAMILIA+...
O AUTOR
Mestre e Doutor em Direito. Pós-Doutor em Direito Civil pela Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE/ Faculdade de Direito do Recife - FDR. Professor Adjunto III de Direito de Família Sucessões da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN e da UNIFACISA. Professor da ESMA-PB e da ESA-PB. Professor convidado em cursos de Especialização na Área de Família e Sucessões em todo o país. Palestrante. Advogado especializado em Direito de Família. Autor dos livros "Leis Civis Especiais no Direito de Família", pela Juspodivm - BA e "Direito de Família, Direitos Humanos" pela Edijur - SP e "O ensino do Direito de Família no Brasil" - Ed. Fórum. Foi Presidente da Comissão Estadual de Direito de Família da OAB/PB. Foi Presidente do IBDFAM-PB. Membro da International Society of Family Law e da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de las Personas. Membro do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família. Membro Pesquisador do CONREP - Constitucionalização das Relações Privadas - Faculdade de Direito do Recife- UFPE. Contato: professordimitre@hotmail.com
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