Filhos da Violência
Jones Figueiredo Alves
Onde a violência intrafamiliar acontece
por agressões conjugais, quando na maioria dos casos os casais em
disputa possuem filhos menores, são estes, crianças e adolescentes, as
maiores vitimas. Como testemunhas presenciais dos conflitos que
dilaceram a família, os efeitos da violência doméstica são os mais
graves para essas vitimas específicas. Recente estudo português situa
que em 42% dos casos de agressões entre casais, os filhos “assistem na
primeira fila”, sofrendo, daí, maus-tratos psíquicos (Revista Visão nº
1.044; PT, 07.03.2013).
Assim, impõe-se
admitir que esses danos psicológicos refletem-se no futuro em cadeia
sucessória, tornando, mais das vezes, a cultura da violência algo
natural. No ponto, campanha lusitana agora levada a efeito contra a
violência doméstica indica uma mãe questionando o médico sobre as
reações estranhas do filho, devolvendo-lhe o clínico o questionamento,
com a pergunta: “Há quanto tempo é o que seu marido lhe bate?”.
No Brasil, a questão
foi abordada pela primeira vez na Síntese de Indicadores Sociais, do
IBGE (2012), com dados sobre violência contra a mulher. Revela a
pesquisa que as agressões familiares são em 66,1% dos casos presenciadas
pelos filhos. Os registros indicam que “crianças que acompanham atos de
violência podem vir a ser futuros agressores”. Certo que em 74,6% das
ocorrências os agressores são cônjuges, companheiros ou namorados e que
em vinte anos (1998/2008), das cerca de 42 mil mulheres assassinadas no
país, 70% delas foram na própria casa (SPM), o número de filhos menores
expostos nos ambientes familiares violentos torna-se praticamente
incalculável.
Na violência
doméstica, onde a família é um retrato na parede, há dois retratos de
vítimas-tipo: (i) mulher, casada e com filhos; (ii) filho menor, criança
ou adolescente, criado em ambiente hostil, testemunha de agressões
entre os pais. Os filhos menores, vitimas especificas, envolvidos nas
emoções contraditórias dos pais diante de pugilatos verbais ou físicos,
colocam-se muitas vezes vitimas permanentes, porque continuam a ser
vitimas mesmo depois da separação dos pais, quando vitimizados indiretos
por alienações parentais ocorrentes.
Na atual campanha
contra a violência doméstica, conduzida pelo governo português, através
da Comissão de Igualdade de Gênero (CIG), o tema dos “filhos da
violência” é tratado por seus multifacetados aspectos, com devida
seriedade de políticas públicas, rigor científico e amplitude de
situações. “Impõe-se acabar com a crença de que “ele é mau marido mas é
bom pai; porque os efeitos sobre as crianças são muito nefastos”,
expressou Marta Silva, do Núcleo de Violência Doméstica da CIG. De fato,
a violência contra a mulher mãe é sempre, em regra, também contra os
filhos, à exata medida do impacto indiretamente por eles vivenciado.
Mas não é só. Os
filhos da violência representam, atualmente, uma tragédia sem
fronteiras, preocupando juristas, profissionais da saúde, políticos e
sociedade civil do mundo inteiro, diante de um histórico de horror que
compromete as futuras gerações. Afinal são as agressões de casa que
fazem o mundo mais violento. Convém, diante da atualidade do tema,
assinalar alguns pontos relevantes:
(i) Projeto europeu
produzido para a análise dos modelos agressivos de relações em família,
vitimizando os filhos, originou o livro “Witnesssing Violence”
(“Testemunhando a Violência”). Nele, as estatísticas são alarmantes. Os
filhos são referidos como as "vítimas esquecidas" já que as intervenções
em geral visam a vítima ou o agressor adulto. Essa vitimização se
constitui, aliás, em fator de sério risco para problemas ao longo da
vida, como já revelado em uma amostra nacionalmente representativa de
homens e mulheres norte-americanos (Straus, MA; Columbus, 1992).
(ii) A pesquisa do psicólogo Kaethe
Weingarten, da Harvard Medical School, também examinou os efeitos
biológicos e psicológicos de ser o filho um testemunho de violência dos
pais, revelando e definindo uma questão que até agora não tinha nome.
Ele a chama de “choque comum”, como intitula a sua obra “Common Shock”
(Com. NAL, 400 pp., Amazon), oferecendo ferramentas para uma análise
proativa do problema. Cuida-se do melhor estudo a respeito. Weingarten
fundou e dirige o “Projeto Testemunhar”, lecionando no Instituto da
Família de Cambridge.
(iii) Ao tempo
preciso que os filhos, testemunhas das agressões, são obrigados a
relatar a violência doméstica entre os pais, reaviventando nos relatos
as situações sofridas, os seus depoimentos pessoais implicam, por isso
mesmo, em danos indiretos a si impostos, em manifesta revitimização. Em
casos que tais, a política judiciária do “depoimento sem danos” (DSD),
exigindo no trabalho judicial a intervenção de especialistas (pedagogos,
psicólogos, etc.) tem sido exitosa em nosso país, a partir das práticas
pioneiras de Porto Alegre (2003) e Recife (2009). Em Portugal, opera-se
mais um avanço, quando se torna procedimento obrigatório garantir
“depoimentos para memória futura”, ou seja, acautelar a espontaneidade
do relato das vitimas, em momento imediato dos fatos, cujos depoimentos
adiante poderão servir com maior presteza ao exame do caso.
Pois bem. Não há
negar que as crianças da violência interparental, sofrem um longo prazo
de impacto psicológico e social por testemunhar conflitos físicos entre
os pais. Mais ainda, em ocorrendo o fenômeno da “Parentificação”, na sua
espécie emocional (Gregory J. Jurkovic, New York, 1998) quando uma
criança ou adolescente assume o papel de confidente ou mediador entre os
pais.
No elevado espectro
da violência doméstica, quando os filhos sobreviventes da violência de
casais, tornam-se, ao fim e ao cabo, também vitimas do agressor, impende
o enfrentamento com politicas públicas de saúde. O problema da
violência agudiza-se e torna-se também um problema de saúde pública, a
tratar de novos pacientes, os filhos menores em situação de risco, a
exigir intervenções multidisciplinares de profissionais de saúde,
pedagogos e psicólogos.
Em Portugal, existe
apenas um único hospital na área da violência doméstica, o Centro
Hospital Médio Tejo, em Abrantes, onde inclusive funciona uma unidade de
recolha de provas forenses. Agora, colima-se estender a experiência em
outros hospitais. É urgente adotar essa experiência em nosso país, com
centros médicos avançados destinados à violência doméstica contra a
mulher e ao tratamento psicológico dos filhos da violência, em unidades
de terapia e psicopedagogia especializadas, com apoio do SUS. Por certo,
o projetado “Hospital da Mulher”, em Recife, bem poderia ser
projeto-piloto de uma politica objetiva nesse fim.
Afinal, diria Sigmund Freud: “a criança é o pai do homem”. Esse futuro exige uma resposta adequada no presente.
JONES FIGUEIRÊDO ALVES
– O autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de
Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de
Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor
de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
ALVES Jones Figueirêdo .
Filhos da Violência. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/878. Acesso em10/05/2013
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