novembro 24, 2012
Artigo: O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA. BREVES CONSIDERAÇÕES. Por: Flavio Tartuce
O PRINCÍPIO DA
AFETIVIDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA.
BREVES CONSIDERAÇÕES. [1]
Flávio Tartuce[2]
Tornou-se
comum, na doutrina contemporânea, afirmar que o afeto tem valor jurídico ou,
mais do que isso, foi alçado à condição de verdadeiro princípio geral. Como bem
pondera a juspsicanalista Giselle
Câmara Groeninga, “O papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido
crescente no Direito de Família, que não mais pode excluir de suas
considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de uma
família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade
inerente às relações. Cada vez mais se dá importância ao afeto nas
considerações das relações familiares; aliás, um outro princípio do Direito de
Família é o da afetividade”.[3]
De
início, para os devidos fins de delimitação conceitual, deve ficar claro que o afeto não se confunde necessariamente com
o amor. Afeto quer dizer interação ou ligação entre pessoas, podendo ter
carga positiva ou negativa. O afeto positivo, por excelência, é o amor; o
negativo é o ódio. Obviamente, ambas as cargas
estão presentes nas relações familiares.
Pois
bem, apesar de algumas críticas contundentes e de polêmicas levantadas por
alguns juristas, não resta a menor dúvida de que a afetividade constitui um
princípio jurídico aplicado ao âmbito familiar. Conforme bem aponta Ricardo
Lucas Calderon, em sua dissertação de mestrado defendida na UFPR, “parece
possível sustentar que o Direito deve laborar com a afetividade e que sua atual
consistência indica que se constitui em princípio no sistema jurídico
brasileiro. A solidificação da afetividade nas relações sociais é forte
indicativo de que a análise jurídica não pode restar alheia a este relevante
aspecto dos relacionamentos. A afetividade é um dos princípios do direito de
família brasileiro, implícito na Constituição, explícito e implícito no Código
Civil e nas diversas outras regras do ordenamento”.[4]
Dessa
forma, apesar da falta de sua previsão expressa na legislação, percebe-se que a
sensibilidade dos juristas é capaz de demonstrar que a afetividade é um
princípio do nosso sistema. Como é cediço, os princípios jurídicos são
concebidos como abstrações realizadas pelos intérpretes, a partir das normas,
dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos,
econômicos e sociais. Na linha do exposto por José de Oliveira Ascensão, os
princípios são como “grandes orientações que se depreendem, não apenas do
complexo legal, mas de toda a ordem jurídica”.[5]
Eles estruturam o ordenamento, gerando consequências concretas, por sua
marcante função para a sociedade. E não restam dúvidas que a afetividade
constitui um código forte no Direito
Contemporâneo, gerando alterações profundas na forma de se pensar a família
brasileira. Vejamos três consequências pontuais, perceptíveis nos últimos anos.
De
início, como primeira consequência, a
afetividade contribuiu para o reconhecimento jurídico da união homoafetiva, expressão cunhada por Maria Berenice Dias, como
entidade familiar. Após um longo trajeto -, que se iniciou pela negação
absoluta de direitos, passou pelo tratamento como sociedade de fato e chegou ao
enquadramento como família -, o Direito Brasileiro passou a tratar a união
entre pessoas do mesmo sexo como comunidade equiparada à união estável. A
culminância de tal conclusão se deu com a histórica decisão do STF de 5 de maio
de 2011, publicada no seu Informativo n.
625.
Uma segunda consequência a ser pontuada é a
admissão da reparação por danos em decorrência do abandono afetivo. Em decisão
anterior, o STJ acabou por concluir que não caberia indenização a favor do
filho em face do pai que o abandona moralmente (STJ, REsp 757.411/MG, Rel. Min.
Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 29/11/2005, DJ 27/03/2006, p.
299). Sustentou-se que não haveria qualquer ato ilícito na conduta do pai que
abandona afetivamente o filho, pois o afeto não pode ser imposto na referida
relação parental, não sendo o caso da existência de um dever jurídico de
convivência.
Demonstrando
evolução quanto ao tema, surgiu mais recente decisão do próprio STJ em revisão
à ementa anterior, ou seja, admitindo a reparação civil pelo abandono afetivo (STJ,
REsp 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
24/04/2012, DJe 10/05/2012). Em
sua relatoria, a Min. Nancy Andrighi ressaltou que o dano moral estaria
presente diante de uma obrigação
inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a
ideia do cuidado como valor jurídico,
a magistrada deduziu pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono
afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e jurídicos:
“amar é faculdade, cuidar é dever”. Apesar
do voto contrário do Min. Massami Ueda, na linha do julgado antecedente, a
relatoria foi seguida pelos Ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso
Sanseverino.
Essa
nova decisão, a qual se filia, demonstra um profundo impacto do reconhecimento
do afeto como verdadeiro princípio da nossa ordem. Partindo-se para a análise
técnica da questão, pontue-se que o dever de convivência dos pais em relação
aos filhos menores é expresso pelo art. 229 da CF/1988 e pelo art. 1.634, incs.
I e II do CC/2002. Se a violação desse dever – que se contrapõe a um direito
subjetivo equivalente -, causar dano, estarão presentes os requisitos do ato
ilícito civil (art. 186 do CC/2002).
A terceira e última consequência
da afetividade a ser pontuada é o reconhecimento da parentalidade socioafetiva
como nova forma de parentesco, enquadrada na cláusula geral “outra origem”, do
art. 1.593 do CC/2002. Não se olvide que a ideia surgiu a partir de histórico
artigo de João Baptista Villela, publicado em 1979, tratando da “desbiologização da paternidade”.
Concluiu o jurista, na ocasião, que o vínculo
de parentalidade é mais do que um dado biológico, é um dado cultural, consagração
técnica da máxima popular pai é quem
cria. Paulatinamente, a jurisprudência passou a ponderar que a posse de estado de filho deve ser levada
em conta para a determinação do vínculo filial, ao lado das verdades registral
e biológica. Nos acórdãos mais notórios, julgou-se como indissolúvel o vínculo
filial formado nos casos de reconhecimento espontâneo de filho alheio, cumulado
com a convivência posterior entre pais e filhos (por todos: STJ, REsp
234.833/MG, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, QUARTA TURMA, julgado em
25/09/2007, DJ 22/10/2007, p. 276; REsp 709.608/MS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO
DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 05/11/2009, DJe 23/11/2009 e REsp
1.259.460/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em
19/06/2012, DJe 29/06/2012).
Atente-se que parte da doutrina e da jurisprudência nacionais entende
ser possível o reconhecimento da multiparentalidade,
o que conta com o apoio deste articulista.[6]
O que se tem visto na jurisprudência até aqui é uma escolha
de Sofia, entre o vínculo biológico e o socioafetivo, o que não pode
prosperar em muitas situações fáticas. Como interroga a doutrina consultada,
por que não seria possível ter a pessoa dois pais ou duas mães no registro
civil, para todos os fins jurídicos, inclusive familiares e sucessórios? Reconhecendo
tais premissas, a inédita sentença prolatada pela juíza Deisy Cristhian Lorena
de Oliveira Ferraz, da Comarca de Ariquemes, Rondônia, determinando o duplo
registro da criança, em nome do pai biológico e do pai socioafetivo, diante de
pedido de ambos para o reconhecimento da multiparentalidade. Na mesma linha, o também
novel acórdão do Tribunal de São Paulo, que determinou o registro de madrasta
como mãe civil de enteado, mantendo-se a mãe biológica, que havia
falecido quando do parto (TJSP, Apelação nº
0006422-26.2011.8.26.0286, 1ª Câmara de Direito Privado, Itu, Relator:
Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, julgado em 14 de agosto de 2012). [7]
Outras decisões
devem surgir, sendo a multiparentalidade um caminho sem volta do Direito de
Família Contemporâneo, consolidando ainda mais a afetividade como verdadeiro
princípio jurídico do sistema nacional.
[1]
Artigo publicado na Revista Consulex nº. 378, de 15 de outubro de 2012, páginas
28 e 29 (Ano XVI, Brasília, DF). Matéria de capa: Direito de Família e Afetividade no Século XXI. .
[2]
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor do programa de pós-graduação stricto
sensu (mestrado e doutorado) da Faculdade Autônoma de Direito
(FADISP-Alfa). Coordenador e professor dos cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito
(EPD). Professor exclusivo para cursos preparatórios da Rede LFG. Advogado e
consultor jurídico em São Paulo. Autor da Editora GEN/Método.
[3] GROENINGA,
Giselle Câmara. Direito Civil. Volume 7.
Direito de Família. Orientação: Giselda M. F Novaes Hironaka. Coordenação:
Aguida Arruda Barbosa e Cláudia Stein Vieira. São Paulo: RT, 2008, p. 28.
[4]
CALDERON, Ricardo Lucas. O percurso construtivo
do princípio da afetividade no Direito de Família Brasileiro contemporâneo:
contexto e efeitos. Disponível em
http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/26808/dissertacao%20FINAL%2018-11-2011%20pdf.pdf?sequence=1.
Acesso em 23 de setembro de 2012.
[5]
ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à
ciência do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 3ª Edição, 2005, p. 404.
[6] Ver: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES,
Renata de Lima. Multiparentalidade como efeito da socioafetivade nas famílias
recompostas. In O Direito das Famílias entra a norma e a
realidade. São Paulo: Atlas, 2010, p. 190-218; ALMEIDA, Renata Barbosa
de; RODRIGUES JR., Walsir Edson. Direito das
Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 381-383; BUNAZAR,
Maurício. Pelas portas de Villela: um ensaio sobre a pluriparentalidade como
realidade sociojurídica. Revista IOB de Direito de Família n. 59,
abril-maio de 2010, p. 63-73.
[7] As
decisões estão disponíveis no site deste autor: www.flaviotartuce.adv.br. Seção
Jurisprudência.
AUTHOR:
Dimitre Soares
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