outubro 31, 2012
Direito de Família e Jurisprudência. STJ: Regime de bens e divisão da herança: dúvidas jurídicas no fim do casamento
Antes da celebração do casamento, os noivos têm a possibilidade de
escolher o regime de bens a ser adotado, que determinará se haverá ou
não a comunicação (compartilhamento) do patrimônio de ambos durante a
vigência do matrimônio. Além disso, o regime escolhido servirá para
administrar a partilha de bens quando da dissolução do vínculo conjugal,
tanto pela morte de um dos cônjuges, como pela separação.
O instituto, previsto nos artigos 1.639 a 1.688 do Código Civil de
2002 (CC/02), integra o direito de família, que regula a celebração do
casamento e os efeitos que dele resultam, inclusive o direito de meação
(metade dos bens comuns) - reconhecido ao cônjuge ou companheiro, mas
condicionado ao regime de bens estipulado.
A legislação brasileira prevê quatro possibilidades de regime
matrimonial: comunhão universal de bens (artigo 1.667 do CC), comunhão
parcial (artigo 1.658), separação de bens - voluntária (artigo 1.687) ou
obrigatória (artigo 1.641, inciso II) - e participação final nos bens
(artigo 1.672).
A escolha feita pelo casal também exerce influência no momento da
sucessão (transmissão da herança), prevista nos artigos 1.784 a1.856 do
CC/02, que somente ocorre com a morte de um dos cônjuges.
Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, da Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), “existe, no plano sucessório, influência
inegável do regime de bens no casamento, não se podendo afirmar que são
absolutamente independentes e sem relacionamento, no tocante às causas e
aos efeitos, esses institutos que a lei particulariza nos direitos de
família e das sucessões”.
Regime legal
Antes da Lei 6.515/77 (Lei do Divórcio), caso não houvesse
manifestação de vontade contrária, o regime legal de bens era o da
comunhão universal - o cônjuge não concorre à herança, pois já detém a
meação de todo o patrimônio do casal. A partir da vigência dessa lei, o
regime legal passou a ser o da comunhão parcial, inclusive para os casos
em que for reconhecida união estável (artigos 1.640 e 1.725 do CC).
De acordo com o ministro Massami Uyeda, da Terceira Turma do STJ,
“enquanto na herança há substituição da propriedade da coisa, na meação
não, pois ela permanece com seu dono”.
No julgamento do Recurso Especial (REsp) 954.567, o ministro
mencionou que o CC/02, ao contrário do CC/1916, trouxe importante
inovação ao elevar o cônjuge ao patamar de concorrente dos descendentes e
dos ascendentes na sucessão legítima (herança). “Com isso, passou-se a
privilegiar as pessoas que, apesar de não terem grau de parentesco, são o
eixo central da família”, afirmou.
Isso porque o artigo 1.829, inciso I, dispõe que a sucessão
legítima é concedida aos descendentes, em concorrência com o cônjuge
sobrevivente (exceto se casado em regime de comunhão universal, em
separação obrigatória de bens - quando um dos cônjuges tiver mais de 70
anos ao se casar - ou se, no regime de comunhão parcial, o autor da
herança não tiver deixado bens particulares).
O inciso II do mesmo artigo determina que, na falta de
descendentes, a herança seja concedida aos ascendentes, em concorrência
com o cônjuge sobrevivente, independentemente do regime de bens adotado
no casamento.
União estável
Em relação à união estável, o artigo 1.790 do CC/02 estabelece que,
além da meação, o companheiro participa da herança do outro, em relação
aos bens adquiridos na vigência do relacionamento.
Nessa hipótese, o companheiro pode concorrer com filhos comuns, na
mesma proporção; com descendentes somente do autor da herança, tendo
direito à metade do que couber ao filho; e com outros parentes, tendo
direito a um terço da herança.
No julgamento do REsp 975.964, a ministra Nancy Andrighi, da
Terceira Turma do STJ, analisou um caso em que a suposta ex-companheira
de um falecido pretendia concorrer à sua herança. A ação de
reconhecimento da união estável, quando da interposição do recurso
especial, estava pendente de julgamento.
Consta no processo que o falecido havia deixado um considerável
patrimônio, constituído de imóveis urbanos, várias fazendas e milhares
de cabeças de gado. Como não possuía descendentes nem ascendentes,
quatro irmãs e dois sobrinhos - filhos de duas irmãs já falecidas -
seriam os sucessores.
Entretanto, a suposta ex-companheira do falecido moveu ação
buscando sua admissão no inventário, ao argumento de ter convivido com
ele, em união estável, por mais de 30 anos. Além disso, alegou que, na
data da abertura da sucessão, estava na posse e administração dos bens
deixados por ele.
Meação
De acordo com a ministra Nancy Andrighi, com a morte de um dos
companheiros, entrega-se ao companheiro sobrevivo a meação, que não se
transmite aos herdeiros do falecido. “Só então, defere-se a herança aos
herdeiros do falecido, conforme as normas que regem o direito das
sucessões”, afirmou.
Ela explicou que a meação não integra a herança e, por
consequência, independe dela. “Consiste a meação na separação da parte
que cabe ao companheiro sobrevivente na comunhão de bens do casal, que
começa a vigorar desde o início da união estável e se extingue com a
morte de um dos companheiros. A herança, diversamente, é a parte do
patrimônio que pertencia ao companheiro falecido, devendo ser
transmitida aos seus sucessores legítimos ou testamentários”,
esclareceu.
Para resolver o conflito, a Terceira Turma determinou que a posse e
administração dos bens que integravam a provável meação deveriam ser
mantidos sob a responsabilidade da ex-companheira, principalmente por
ser fonte de seu sustento, devendo ela requerer autorização para fazer
qualquer alienação, além de prestar contas dos bens sob sua
administração.
Regras de sucessão
A regra do artigo 1.829, inciso I, do CC, que regula a sucessão
quando há casamento em comunhão parcial, tem sido alvo de interpretações
diversas. Para alguns, pode parecer que a regra do artigo 1.790, que
trata da sucessão quando há união estável, seja mais favorável.
No julgamento do REsp 1.117.563, a ministra Nancy Andrighi afirmou
que não é possível dizer, com base apenas nas duas regras de sucessão,
que a união estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses,
“porquanto o casamento comporta inúmeros outros benefícios cuja
mensuração é difícil”.
Para a ministra, há uma linha de interpretação, a qual ela defende,
que toma em consideração a vontade manifestada no momento da celebração
do casamento, como norte para a interpretação das regras sucessórias.
Companheira e filha
No caso específico, o autor da herança deixou uma companheira, com
quem viveu por mais de 30 anos, e uma filha, fruto de casamento
anterior. Após sua morte, a filha buscou em juízo a titularidade da
herança.
O juiz de primeiro grau determinou que o patrimônio do falecido,
adquirido na vigência da união estável, fosse dividido da seguinte
forma: 50% para a companheira (correspondente à meação) e o remanescente
dividido entre ela e a filha, na proporção de dois terços para a filha e
um terço para a companheira.
Para a filha, o juiz interpretou de forma absurda o artigo 1.790 do
CC, “à medida que concederia à mera companheira mais direitos
sucessórios do que ela teria se tivesse contraído matrimônio, pelo
regime da comunhão parcial”.
Ao analisar o caso, Nancy Andrighi concluiu que, se a companheira
tivesse se casado com o falecido, as regras quanto ao cálculo do
montante da herança seriam exatamente as mesmas.
Ou seja, a divisão de 66% dos bens para a companheira e de 33% para
a filha diz respeito apenas ao patrimônio adquirido durante a união
estável. “O patrimônio particular do falecido não se comunica com a
companheira, nem a título de meação, nem a título de herança. Tais bens
serão integralmente transferidos à filha”, afirmou.
De acordo com a ministra, a melhor interpretação do artigo 1.829,
inciso I, é a que valoriza a vontade das partes na escolha do regime de
bens, mantendo-a intacta, tanto na vida quanto na morte dos cônjuges.
“Desse modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de
acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge
sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária
sobre os bens comuns, haja ou não bens particulares, partilháveis estes
unicamente entre os descendentes”, mencionou.
Vontade do casal
Para o desembargador convocado Honildo Amaral de Mello Castro (já
aposentado), “não há como dissociar o direito sucessório dos regimes de
bens do casamento, de modo que se tenha após a morte o que, em vida, não
se pretendeu”.
Ao proferir seu voto no julgamento de um recurso especial em 2011
(o número não é divulgado em razão de segredo judicial), ele divergiu do
entendimento da Terceira Turma, afirmando que, se a opção feita pelo
casal for pela comunhão parcial de bens, ocorrendo a morte de um dos
cônjuges, ao sobrevivente é garantida somente a meação dos bens comuns -
adquiridos na vigência do casamento.
No caso, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal reformou
sentença de primeiro grau para permitir a concorrência, na sucessão
legítima, entre cônjuge sobrevivente, casado em regime de comunhão
parcial, e filha exclusiva do de cujus (autor da herança), sobre a
totalidade da herança.
A menor, representada por sua mãe, recorreu ao STJ contra essa
decisão, sustentando que, além da meação, o cônjuge sobrevivente somente
concorre em relação aos bens particulares do falecido, conforme a
decisão proferida em primeiro grau.
Interpretação
Para o desembargador Honildo Amaral, em razão da incongruência da
redação do artigo 1.829, inciso I, do CC/02, a doutrina brasileira
possui correntes distintas acerca da interpretação da sucessão do
cônjuge casado sob o regime de comunhão parcial de bens.
Em seu entendimento, a decisão que concedeu ao cônjuge
sobrevivente, além da sua meação, direitos sobre todo o acervo da
herança do falecido, além de ferir legislação federal, desrespeitou a
autonomia de vontade do casal quando da escolha do regime de comunhão
parcial de bens.
O desembargador explicou que, na sucessão legítima sob o regime de
comunhão parcial, não há concorrência em relação à herança, nem mesmo em
relação aos bens particulares (adquiridos antes do casamento), visto
que o cônjuge sobrevivente já está amparado pela meação. “Os bens
particulares dos cônjuges são, em regra, incomunicáveis em razão do
regime convencionado em vida pelo casal”, afirmou.
Apesar disso, ele mencionou que existe exceção a essa regra. Se
inexistentes bens comuns ou herança a partilhar, e o falecido deixar
apenas bens particulares, a concorrência é permitida, “tendo em vista o
caráter protecionista da norma que visa não desamparar o sobrevivente
nessas situações excepcionais”.
Com esse entendimento, a Quarta Turma conheceu parcialmente o
recurso especial e, nessa parte, deu-lhe provimento. O desembargador foi
acompanhado pelos ministros Luis Felipe Salomão e João Otávio de
Noronha.
Contra essa decisão, há embargo de divergência pendente de
julgamento na Segunda Seção do STJ, composta pelos ministros da Terceira
e da Quarta Turma.
Proporção do direito
É possível que a companheira receba verbas do trabalho pessoal do
falecido por herança? Em caso positivo, concorrendo com o único filho do
de cujus, qual a proporção do seu direito?
A Quarta Turma do STJ entendeu que sim. “Concorrendo a companheira
com o descendente exclusivo do autor da herança - calculada esta sobre
todo o patrimônio adquirido pelo falecido durante a convivência -,
cabe-lhe a metade da quota-parte destinada ao herdeiro, vale dizer, um
terço do patrimônio do de cujus”, afirmou o ministro Luis Felipe Salomão
em julgamento de 2011 (recurso especial que também tramitou em
segredo).
No caso analisado, a herança do falecido era composta de proventos e
diferenças salariais, resultado do seu trabalho no Ministério Público,
não recebido em vida. Após ser habilitado como único herdeiro
necessário, o filho pediu em juízo o levantamento dos valores deixados
pelo pai.
O magistrado indeferiu o pedido, fundamentando que a condição de
único herdeiro necessário não estava comprovada, visto que havia ação
declaratória de união estável pendente. O tribunal estadual entendeu
que, se fosse provada e reconhecida a união estável, a companheira teria
direito a 50% do valor da herança.
Distinção
O ministro Salomão explicou que o artigo 1.659, inciso VI, do CC,
segundo o qual, os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge ficam
excluídos da comunhão, refere-se ao regime de comunhão parcial de bens.
Ele disse que o dispositivo não pode ser interpretado de forma
conjunta com o disposto no artigo 1.790, inciso II, do CC/02, que dispõe
a respeito da disciplina dos direitos sucessórios na união estável.
Após estabelecer a distinção dos dispositivos, ele afirmou que o
caso específico correspondia ao direito sucessório. Por essa razão, a
regra do artigo 1.659, inciso VI, estaria afastada, cabendo à
companheira um terço do valor da herança.
Separação de bens
Um casal firmou pacto antenupcial em 1950, no qual declararam que
seu casamento seria regido pela completa separação de bens. Dessa forma,
todos os bens, presentes e futuros, seriam incomunicáveis, bem como os
seus rendimentos, podendo cada cônjuge livremente dispor deles, sem
intervenção do outro.
Em 2001, passados mais de 50 anos de relacionamento, o esposo
decidiu elaborar testamento, para deixar todos os seus bens para um
sobrinho, firmando, entretanto, cláusula de usufruto vitalício em favor
da esposa.
O autor da herança faleceu em maio de 2004, quando foi aberta sua
sucessão, com apresentação do testamento. Quase quatro meses depois, sua
esposa faleceu, abrindo-se também a sucessão, na qual estavam
habilitados 11 sobrinhos, filhos de seus irmãos já falecidos.
Nova legislação
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reformou a sentença de
primeiro grau para habilitar o espólio da mulher no inventário dos bens
do esposo, sob o fundamento de que, como as mortes ocorreram na vigência
do novo Código Civil, prevaleceria o novo entendimento, segundo o qual o
cônjuge sobrevivente é equiparado a herdeiro necessário, fazendo jus à
meação, independentemente do regime de bens.
No REsp 1.111.095, o espólio do falecido sustentou que, no regime
da separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente jamais poderá
ser considerado herdeiro necessário. Alegou que a manifestação de
vontade do testador, feita de acordo com a legislação vigente à época,
não poderia ser alterada pela nova legislação.
O ministro Fernando Gonçalves (hoje aposentado) explicou que,
baseado em interpretação literal da norma do artigo 1.829 do CC/02, a
esposa seria herdeira necessária, em respeito ao regime de separação
convencional de bens.
Entretanto, segundo o ministro, essa interpretação da regra
transforma a sucessão em uma espécie de proteção previdenciária, visto
que concede liberdade de autodeterminação em vida, mas retira essa
liberdade com o advento da morte.
Para ele, o termo “separação obrigatória” abrange também os casos
em que os cônjuges estipulam a separação absoluta de seus patrimônios,
interpretação que não conflita com a intenção do legislador de corrigir
eventuais injustiças e, ao mesmo tempo, respeita o direito de
autodeterminação concedido aos cônjuges quanto ao seu patrimônio.
Diante disso, a Quarta Turma deu provimento ao recurso, para
indeferir o pedido de habilitação do espólio da mulher no inventário de
bens deixado pelo seu esposo.
Processos relacionados: REsp 954567, REsp 975964, REsp 1117563 e REsp 1111095
Fonte: Superior Tribunal de Justiça
AUTHOR:
Dimitre Soares
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