março 05, 2012

Direito de Família: Homoparentalidade

Amigos, disponibilizo aqui, para fins de debate/conhecimento, a recente decisão proaltada por Juiz de Direito da Comarca de Recife - TJPE, acerca do tema tratado no post anterior, qual seja o reconhecimento da paternidade por dois homens, que se utilizaram dos métodos de fertilização in vitro, para gerarem um bebe utilizando uma gestação por substituição ("barriga de aluguel").

Trata-se, como já dito na postagem precedente, de situação absolutamente complexa, da qual o Direito de Família não pode deixar de tecer argumentos éticos e jurídicos, a fim de melhor discussão sobre a matéira.

De modo geral, resta como ótimo meio para estudo da questão da "homoparentalidade".

Boa leitura a todos!

.................................................
PODER JUDICIÁRIO
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DE FAMÍLIA E REGISTRO CIVIL DA COMARCA DO RECIFE
PROCESSO DE INDICAÇÃO DE PATERNIDADE
REQUERENTES: M.A.A. e W.A.A.
S E N T E N Ç A
Vistos etc.
M.A.A. e W.A.A., amplamente qualificados nos autos, ingressam com pedido de abertura da jurisdição administrativa deste Juízo de Família e Registro Civil, postulando o assentamento civil, com a indicação da paternidade, da criança M.T.A.A., nascida em 29/01/2012, concebida a partir de inseminação artificial heteróloga, gerada em útero de substituição, com utilização de material genético do primeiro requerente e de óvulo doado por mulher não identificada, para fazer constar o nome de ambos na qualidade de pais.
A menor M.T.A.A. está sob a guarda dos requerentes, os quais vivem em união homoafetiva - recentemente convertida em casamento civil - há mais de 15 (quinze) anos, conforme faz prova Certidão de Casamento por eles apresentada.

A concepção da infante se deu através da fertilização in vitro no útero de substituição de A.L.S., a qual atestou, mediante Escritura Pública de Termo de Consentimento, sua livre participação na gestação em substituição, a partir de doação de óvulo proveniente de banco de armazenamento, reconhecendo a dupla paternidade dos requerentes em relação a menor.
À petição, agregaram os seguintes documentos: Declaração de Nascido Vivo nº 30-56830128-7; Certidão de Casamento; Termo de Consentimento, por instrumento particular e público; Declaração do Centro de Reprodução Humana; Resolução CFM nº 1.957/2010, e seu Anexo Único (Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida); Relatos colhidos na internet sobre casos ocorridos anteriormente; Cópia de decisão judicial, em situação análoga, onde duas mulheres (a genitora e sua companheira) obtiveram autorização judicial para registro de uma criança.
Pronunciando-se nestes autos, o representante do Ministério Público, opinou favoravelmente ao pedido dos requerentes, na esteira de seu parecer colacionado às fls. 27/40, que esgotou com preciosismo as questões marginais e nucleares do presente feito, tornando despiciendas quaisquer delongas que frustrem a análise do ponto de maior pungência contido nesses autos – a luta pelo reconhecimento de direitos dos casais homoafetivos, notadamente, a homoparentalidade.

Findo este breve histórico da causa, principio meu julgamento.


Assentada uma sintética narrativa dos fatos que sedimentam este processo de indicação de paternidade, utilizado como ferramenta processual de abertura da jurisdição administrativa deste Juízo de Família e Registro Civil, e não havendo qualquer questão processual a solver, passo ao esquadrinhamento da questão nuclear do pedido.
O objetivo deste feito administrativo é a abertura do assentamento de nascimento da menor M.T.A.A., concebida através de uma reprodução assistida heteróloga, na condição de filha dos requerentes, ambos do sexo masculino.
Principiando minha convicção, começo por aclarar que o caso revelado pelos meandros destes autos, diz respeito à possibilidade da configuração da homoparentalidade mediante a chancela judicial, circunstância a particularizar e impingir relativo ineditismo ao caso em julgamento.
Pelas frestas dos presente autos, se percebe a busca de dois cidadãos à fruição de direitos basilares, constitucionalmente albergados, e, à devida tutela estatal à nova formatação de entidade familiar e, em especial, de seus consectários, in casu, o direito à homoparentalidade.
Nota-se que os requerentes, os quais mantém uma relação homoafetiva há mais de 15 (quinze) anos, buscam converter um vínculo precário, em que, teoricamente, apenas um dos requerentes poderia ter a paternidade reconhecida com base na consanguinidade, para um vínculo institucionalizado, no qual os dois
requerentes poderão ter a paternidade simultaneamente reconhecida, com alicerce na afetividade e na aplicação da mais moderna hermenêutica jurídica.
Em suma, o que se busca, à míngua de legislação específica, é dotar de caracteres jurídicos uma realidade fenomênica, que, saliente-se, não se restringe ao caso dos autos, pulverizando-se, dia a dia, na nossa teia social.
Daí surge a necessidade de um acurado procedimento hermenêutico, baseado numa interpretação pluralista e aberta dos ditames constitucionais e infraconstitucionais.
Numa sociedade democrática, na qual o pluralismo e a convivência harmônica dos contrários devem subsistir, não há espaço para prevalência de normas jurídicas que conduzam a interpretações polissêmicas e/ou excludentes dos direitos de minorias, como se dá no bojo das normas que restringem a legitimação estatal às relações puramente heteroafetivas.
A compreensão literal de tais dispositivos criará, com efeito, uma odiosa e confinante marginalização social de pares, que acabará por estrangular a democracia e, via oblíqua, o próprio Estado Pluralista de Direito.
Diante desse estado de coisas, o Poder Judiciário, no exercício de sua função de intérprete da lei, deve estar atento ao ruído (quiçá estrondo) das marchas sociais; ciente que “interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no
tempo e/ou integrá-lo na realidade social”, na dicção brilhante do constitucionalista alemão Peter Häberle.
Ao revés das incompreensíveis resistências sociais e institucionais, que se fundam em dogmatismos ultrapassados, me perfilo ao entendimento de que, qualquer dispositivo de lei que venha a constituir embaraço à plena fruição dos direitos fundamentais dos cidadãos, deva ser abolido do sistema jurídico vigente, por intermédio de um acurado procedimento hermenêutico, ou seja, através de uma interpretação pluralista e aberta dos dispositivos constitucionais que guardem correspondência com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
É justamente isso que fizeram os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em recente decisão, proferida em 05 de maio de 2011, e que vem sendo apontada como indutora da catálise de entendimentos e avanços sobre a temática da homoafetividade em nosso país, tendo em vista sua natureza abrangente, justíssima e caudatária (dotada de eficácia contra todos e efeito vinculante - art. 102, § 2º, CF/88).
Na dita decisão, prolatada na sede da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, convertida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277, os ministros daquela Corte, reconheceram, por unanimidade, a existência de mais um tipo de entidade familiar - a união de pessoas do mesmo sexo - e, via de consequência, reconheceram os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis àqueles que optam pela relação homoafetiva.

Anote-se que a aludida decisão se reveste de um duplo efeito.
A um, para reconhecer a existência de mais um tipo de entidade familiar: o da união de pessoas do mesmo sexo.
A dois, e é esse o ponto de destaque, para estender os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis àqueles que optam pela relação homoafetiva.
Antecipadamente, busco, de logo, rechaçar as críticas que possam advir desse posicionamento, oriundas daqueles que têm assacado o Judiciário sob o argumento de que este Poder tem extrapolado suas atribuições constitucionais, lembrando-lhes que toda a construção legal acerca da homoafetividade, hospedada no direito de família no Brasil, tem origem pretoriana.
Instados a decidir nos casos concretos, cabe a nós magistrados, darmos um tratamento arqueável as normas jurídicas, amoldando-as aos fatos sociais em que se afigura a omissão legislativa plena, como se dá em relação à homoafetividade.
A lei, na maioria dos casos, veio a posteriori, na tentativa, por vezes tardia e inócua, de adequar a norma no tempo ou integrá-la ao fenômeno social, por essência, ultra dinâmico.

Embora relegado à míngua legislativa, em razão das incompreensíveis resistências sociais e institucionais, fundadas em dogmatismos seculares, configura-se uma realidade que o Judiciário não pode ignorar.
Corroborando este entendimento, cumpre-me transcrever excerto do voto do Ministro do STJ, Luís Felipe Salomão, no julgamento do REsp n 1183378/RS, publicado no DJe em 01/02/2012, que afastou a existência de qualquer normativo infraconstitucional suficiente a invalidar o casamento homoafetivo e discorreu sobre o papel do Judiciário na supressão das lacunas legislativas:
“Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da minoria, pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.” “Nessa toada, enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é ‘democrático’ formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis.”

No cenário dos autos, vê-se uma entidade familiar, na qual os requerentes se reconhecem como homossexuais e almejam exercer, conjuntamente, a função de pais de uma criança, fenômeno que vem sendo denominado pela doutrina moderna de homoparentalidade1.
Acrescente-se ao quadro o fato de que, mediante planejamento conjunto, os parceiros optaram pelo acesso à homoparentalidade através do uso das novas tecnologias reprodutivas (inseminação artificial heteróloga) para formar uma família, sendo certo que a afetividade, desde o nascimento vem sendo exercida pelos dois, malgrado apenas um deles ser o pai biológico.
A pequena M.T.A.A., desta feita, do ponto de vista estritamente biológico, é filha de M.A.A., mas afetivamente, o é, igualmente, de W.A.A. – que compartilhou com seu marido todas as agruras e benesses, que envolveram o sonho mútuo deste casal em trazer ao mundo um rebento, suportando, inclusive, as responsabilidades materiais e emocionais advindas desse processo.
Volvendo-me às pesquisas e estudos oficiais sobre a homoparentalidade, que vêm sendo realizados ao redor do mundo há mais de 30 (trinta) anos, encampados por profissionais de múltiplas áreas do conhecimento, como a Psicologia, Antropologia, Psiquiatria, Pediatria, Serviço Social e do próprio Direito, temos que nenhum prejuízo à criança foi observado, sob o ponto de vista de sua saúde psíquica, estabilidade emocional, capacidade de adaptação ao meio, enfrentamento do estigma, desenvolvimento da identidade de gênero, orientação sexual, dentre outros aspectos.

As pesquisas demonstram, ainda, não haver diferenças significativas entre o desenvolvimento de crianças criadas por famílias heterossexuais, comparadas àquelas criadas por famílias homossexuais. Assim não poderia ser diferente, posto que não é o sexo dos pais/mães que irá configurar-se como fator de preponderância ao bom desenvolvimento da criança, mas a qualidade da relação que aqueles conseguem estabelecer com esta.3
No que atine aos pais/mães homoafetivos, o resultado geral das pesquisas realizadas por diversos autores indicam a inexistência de diferenças em relação à habilidade para o cuidado dos filhos e à capacidade parental de pessoas heterossexuais e homossexuais. Vejamos excerto conclusivo de pesquisa realizada pela American Psychological Association (APA):
(...) não há um único estudo que tenha constatado que as crianças de pais homossexuais e de lésbicas teriam qualquer prejuízo significativo em relação às crianças de pais heterossexuais. Realmente, as evidências sugerem que o ambiente promovido por pais homossexuais e lésbicas é tão favorável quanto os promovidos por pais heterossexuais para apoiar e habilitar o crescimento “psicológico das crianças”. A maioria das crianças em todos os estudos, funcionou bem intelectualmente e “não demonstrou comportamentos egodestrutivos prejudiciais à comunidade”. Os estudos também revelam isso nos termos que dizem respeito às relações com os pais, autoestima, habilidade de liderança, egoconfiança, flexibilidade interpessoal, como também o geral bem-estar emocional das crianças que vivem com pais homossexuais não
3http://www.direitohomoafetivo.com.br/uploads_trabalho_tese/o_direito_%E0_homoparentalidade_cartilha_sobre_as_fam%EDlias_constitu%EDdas_por_pais_homossexuais..pdf

demonstravam diferenças daqueles encontrados com seus pais heterossexuais.” (WALD; REYNOLDS, 1992).
Refletindo no campo hipotético, sob o olhar daqueles que, de maneira radical, rechaçam a possibilidade da criação de menores por casais homoafetivos, alegando a eventual ocorrência de dano psíquico às crianças inseridas neste contexto familiar, tenho que, no meu sentir e valendo-me do senso comum, que tal prejuízo, revela-se, em verdade, àqueles submetidos a maus-tratos, abuso sexual, abandono ou alienação parental. O desejo de partilhar com uma criança o amor, o carinho e o cuidado, tem, ao revés, o condão de construir, de curar.
Valendo-me de uma interpretação aberta e pluralista dos dispositivos atinentes à matéria e da forma dedutiva de raciocínio, tenho como legítima entidade familiar a união dos requerentes, e, em via indissociável, legítimo o direito à parentalidade homoafetiva que perseguem.
Não proclamar tal pretensão corresponderia a uma usurpação principiológica da dignidade da pessoa humana e da cidadania (art. 1º, II e III, CF/88), e dos direitos fundamentais à igualdade (art. 5º, caput e I, CF/88), liberdade, intimidade (art. 5º, X, CF/88), proibição de discriminação (art. 3º, IV, CF/88), ao direito de se ter filhos e planejá-los de maneira responsável (arts. 5º, caput e 226, parágrafo 7º, da CF c/c art. 2º da Lei nº 9.263/96) e, por fim, da própria matriz estruturante do Estado Republicano de Direito: a democracia.
Ainda, seria ato atentatório ao sistema constitucional posto, que confere ao Supremo Tribunal Federal a chancela de guardião da Carta Maior e ato de
incongruência à recente decisão com efeito erga omnes e vinculante já vergastada neste decisório (julgamento conjunto - ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF) e repisada por este próprio Juízo de Direito em outros julgados que guardam similitude ao presente, como se deu na sentença prolatada nos autos do Pedido Administrativo de Conversão de União Estável em Casamento dos próprios requerentes:
“Com efeito, decorridos 23 (vinte e três) anos da promulgação do texto constitucional, me parece imperioso que se inclua na esteira das entidades familiares essa nova modalidade de configuração familiar, mantida por pessoas do mesmo sexo, haja vista, dentre outras razões já esposadas, que estas se fundam, igualmente, nos pilares da afetividade.
Porém, não me parece razoável, à luz da hermenêutica, das considerações históricas, ideológicas, econômicas, políticas e sociais do Estado Brasileiro, que aos homoafetivos seja resguardado, tão somente, o direito de ver reconhecidas suas uniões, que, aprioristicamente, são estáveis, nos requisitos e formas da lei.
Aqui, em prol de uma “falsa segurança jurídica”, estar-se-ia criando um problema tão danoso quanto ao anterior, pois mitigações seriíssimas aos direitos fundamentais dos homoafetivos (igualdade, liberdade, intimidade, não discriminação etc.) continuariam a ser perpetradas, confinando-os ao constante estado de ameaça de lesão, pelo próprio Estado Democrático de Direito, por mais contra-senso que o seja!
Isto porque, o próprio Estado já previu, no bojo de seu sistema, a facilitação da progressão do vínculo precário de afeto (uniões estáveis) ao vínculo institucionalizado (casamento), em prol da verdadeira e mais abrangente segurança jurídica dos nubentes, no atendimento aos seus direitos patrimoniais, previdenciários, sucessórios, de procriação, adoção, etc.
Ao ditar a facilitação, o Estado busca plasmar caracteres sociais, a fim de intensificar sua própria força normativa e garantir a fruição de direitos de diversos matizes aos seus cidadãos, seja qual for a forma que optem em desenvolver suas afetividades.
(...)
Desta forma, estaremos diante da positivação e concretização de um catálogo de direitos fundamentais, cuja tutela vem sendo negligenciada aos homoafetivos pela esteira das décadas.”
Ademais, o que se descortina pelas entrelinhas pulsantes desses autos, salta aos olhos e enternece o coração.
É vívido e clarividente o laço afetivo que envolve os requerentes e a menor, que sujeitos as mais brutais formas de opressão e limitações de diversos matizes, não sucumbiram ao sonho de se sagrarem pais.
Unidos pelo amor que inflamou suas vidas, romperam grilhões, paradigmas e as próprias limitações de seus corpos, que por serem humanamente limitados, não puderam abrigar os desejos da alma, que urgia por gerar sua extensão nesse mundo na figura humana de um filho.
Pela junção do amor pluralista com a ciência, projetaram e conceberam uma filha, a qual almejam tão somente plasmar com seus nomes, a fim de que possam nutri-la ao longo da vida com o cuidado paternal - que todo bem agrega e todo mal afasta.
Buscam e demonstram meios suficientes para criar essa criança no abrigo do amor, dotando-lhe de virtudes e da índole dos retos, para que possa, então, alcançar a liberdade, a autodeterminação e a felicidade em sua, ora tão embrionária, vida.
Negar guarida a essa constelação familiar, formada por pais homoafetivos e uma filha concebida pela fertilização em proveta, é relegá-los a um sofrimento indigno, socialmente imposto, com reflexos avassaladores às suas condições humanas e existenciais.
Tenho que incoerente seria ao Estado-Juiz legitimar, no plano jurídico, o exercício da conjugalidade homoafetiva e não reconhecer, por outro lado, o exercício da parentalidade. Revelar-se-ia discriminatório garantir o desempenho de ambos papéis, conjugal e parental, às famílias compostas de casais heteroafetivos em detrimento daquelas compostas por casais homoafetivos.
A presente decisão tem por escopo chancelar, juridicamente, o que no mundo dos fatos é irreversível, o exercício da coparentalidade homoafetiva, escolha já realizada pelos requerentes.

O pleno exercício da parentalidade, revelado pelo cuidar, prover, educar não guarda relação com a identidade sexual, é inerente ao próprio ser humano.
Até mesmo a antiga concepção que ao pai era reservado tão somente o prover e à mãe o cuidado dos filhos, hodiernamente, se apresenta ultrapassada. Inúmeros são os exemplos de pais que fazem da prática do cuidar um objetivo de vida.
Em um mundo onde incontáveis pequenos seres humanos são privados do despertar de sentimentos nobres, como o amor, o afeto, agraciados são aqueles aos quais é permitida uma convivência saudável, verdadeira, edificante, experimentada no cotidiano em família.
Por mais que as forças estéreis da resistência tentem turbar a tendência da teia social moderna, que, compassadamente, comporta novas formatações de relacionamentos interpessoais, tais iniciativas acabam relegadas ao insucesso.
Nem a força dos tribunais positivistas, nem o fundamentalismo irracional, nem as legiões de reacionários e seus brados falsamente moralistas, conseguem obstar essa nova e espantosa ordem das coisas.
Sob essa ótica e para o reforço das ideias, rogo vênia a ilustre representante do Ministério Público, Dr. Adalberto Mendes Pinto Vieira, para incorporar a este pronunciamento os seguintes excertos do seu parecer:

“Cabe, inicialmente, uma reflexão deste órgão ministerial, ciente de que esta decisão extrapola os limites internos da pretendida indicação de paternidade, enquanto entendimento jurídico e de prestação ministerial no sentido de, através, de uma atitude positiva, colaborar na construção de uma sociedade baseada no respeito à pessoa humana e nos princípios fundamentais desta República.”
(...)
“Estamos diante de um fenômeno jurídico no assentamento do registro e na certidão de nascimento da criança, que se constitui na dupla maternidade ou paternidade, posto que na filiação irá constar apenas o nome do casal constituído pelo par homoafetivo.
A situação apresentada faz-nos refletir sobre a necessidade de que a realidade fática seja acolhida, contemplada e disciplinada pelo universo do direito. Contrario sensu de que serviria o direito senão para disciplinar as relações humanas, estabelecendo regras de convivência e regulando direitos e deveres?”
(...)
“Tudo isto para que possamos afastar falsas premissas do nosso raciocínio, com a finalidade de ater-nos a questão fundamental da presente demanda: que se cinge a uma família, protegida pelo Estado, na busca da sua completude com a constituição de prole, envolvendo a filiação de uma criança para dois pais, com registro pelo pai biológico e seu marido. Arremato a questão para incluir que o método científico escolhido foi o da fertilização in vitro (FIV) e procedimento de injeção intracitoplasmática do Espermatozoide denominada I. C. S. I. , com transferência para o útero de substituição, com procedimento regulado pela Resolução CFM nº 1.957/2010, e seu Anexo Único.

O casal homoafetivo escolheu dar a vida a seus filhos, através desse método conceptivo avançado do útero substituto, com técnica autorizada pelo Conselho Federal de Medicina, constando o nome do pai biológico M. A. A. na Declaração de Nascido Vivo nº ... (fls. 09).
O casal, valendo-se da autonomia de sua vontade (art. 5º, caput, da CF), uma vez que tinha em comum o sonho de ter filhos, ante a impossibilidade biológica de gestar, entregou a missão a uma parenta, A. L. D. S. O sêmen do primeiro requerente, M. A. S. A., fertilizou óvulos de doadora anônima, originando embriões, que um pouco desenvolvidos, foram transferidos para o útero de A. L. D. S., que por sua vez levou a gestação a um termo feliz, resultando no nascimento de M. T.
Estes são os contornos singulares e especiais da demanda apresentada: o fruto da junção biológica dos espermatozoides de M. A. A., com os óvulos de uma doadora anônima, cuja identidade não será conhecida, gestados no útero substituto de A. L. D. S., e que W. A. A., cônjuge daquele, busca assumir conjuntamente a paternidade.
Não se trata de fato de uma ‘MÃE’, mas sim, de uma DOADORA anônima e de uma pessoa que ofereceu seu útero em substituição, constituindo estas duas situações o aspecto singular ao caso. A dupla paternidade, fruto do afeto do par homoafetivo, o aspecto especial. O amor que gera, impulsiona a vida e concretiza os sonhos, é único e exclusivo do par formado por M. e W.
Foi estabelecida uma situação de fato e sem retorno. O casal valeu-se de método avançado da medicina, que possibilitou o nascimento de M. T.”
Chegou o tempo em que se faz necessário por dúvidas em nossas antigas certezas. Há que se resignificar a realidade social. Traçar novos paradigmas.

Finalizando e sob o aspecto formal, observo que o pedido veio instruído com todos os documentos indispensáveis ao seu acolhimento, quais sejam, Declaração de Nascido Vivo nº 30-56830128-7; Certidão de Casamento; Termo de Consentimento, por instrumento particular e público; Declaração do Centro de Reprodução Humana, pelo que se atesta a regularidade formal do pleito.
Traçado esse panorama, e no cotejo do acervo fático-probatório, verifico a inexistência de qualquer irregularidade formal e/ou fatos obstativos à pretensão que ora se persegue.
Conforme fortemente repisado no presente corpo sentencial, a aludida pretensão encontra fundamentação no Preâmbulo Constitucional; nos Princípios da República (art. 1º, II e III); nos Direitos e Garantias Fundamentais, quais sejam, a igualdade (art. 5º, caput, I), liberdade, intimidade (art. 5º, X) e proibição da discriminação (art. 3º, IV); no artigo 226, §§ 1º, 3º, 4º, 5º e 6º, todos, da Constituição da República; na Decisão do STF na ADI 4277 e na ADPF 132, acolhida como ADI e, por fim, na Resolução do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, destinada a promover a igualdade dos seres humanos, sem distinção de perfil sexual, em 17/06/2011, da qual o Brasil é signatário.
À vista do exposto e a livre manifestação das partes e os requisitos exigidos pelos arts. 29, I, e 50 a 66, da Lei nº 6.015/73, nos termos do Decreto nº 7.231/2010, e no Código de Normas dos Serviços Notariais e de Registro do Estado de Pernambuco, Provimento nº 20, de 20/11/2009 (DJE 30/11/2009), determino a abertura e lavratura do assentamento do registro de nascimento de M. T. A. A., nascida em 29.01.2012, as 00h44m, do sexo feminino, no Hospital Esperança Ltda, natural do Recife, Estado de Pernambuco, filha de M. A. A. e de W. A. A., tendo

como avós paternos, por um lado, M. P. D. S. e T. A. D. S., e, por outro, de S. R. D. A. e M. J. S. D. A., respectivamente.
Observe-se o segredo de justiça quanto aos documentos da presente habilitação.
Intimem-se os requerentes e dê-se ciência ao Ministério Público. Registre-se.
Após as expedições necessárias, ao arquivo.
Recife, 28 de fevereiro de 2012
CLICÉRIO BEZERRA E SILVA
- Juiz de Direito -

Um comentário:

  1. Enxergo nessa decisão o fim de uma dúvida pessoal:
    Casais heteroafetivos que adotavam ou geravam crianças através de métodos de doação de óvulos de uma desconhecida, com gestação por uma outra mulher(caso idêntico ao abordado na sentença), tinham direitos e deveres iguais quanto a criança, à criança também era garantida a proteção sucessória e previdenciária dentre outros direitos porque seus pais heteroafetivos constavam no registro de nascimento da mesma, ou seja, no caso de separação ou falecimento de um dos conjuges a criança não estaria "desamparada". A minha dúvida era: se era permitido apenas a um dos pares homoafetivos a adoção ou registro da criança, o que aconteceria se aquele que registrou(pai/mãe) morresse sem deixar herança ou pensão? Se a criança fosse adotada, tendo em vista ela não ter vínculo jurídico com o(a) parceiro(a) daquele(a) que adotou, ela seria devolvida ao orfanato?
    Entendo que essa sentença deixa claro que agora, ambos os parceiros(as), sendo Pais/Mães têm as mesmas OBRIGAÇÕES perante a criança e não apenas aquele(a) que teve seu nome inscrito no registro da criança!
    Ter um Bom Pai ou uma Boa Mãe é muito bom...
    Ter dois Bons Pais ou duas Boas Mães certamente é ainda melhor!

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