março 14, 2024

O DIREITO DE FAMÍLIA NA ERA DO VAZIO: INDIVIDUALISMO, AFASTAMENTO DO ESTADO E ESTABELECIMENTO DAS PRÓPRIAS REGRAS.


 

Dimitre Braga Soares de Carvalho.[1]

 

 

            Uma das características mais marcantes da sociedade, na atual quadra histórica, é o individualismo, entendido como tendência de comportamento, atitude de quem vive exclusivamente para si, demonstra pouca ou nenhuma solidariedade, sendo também sinônimo da percepção mais ampla de um egoísmo latente ou de um egocentrismo institucionalizado nas relações interpessoais contemporâneas. 

            O individualismo é reflexo de um natural afastamento do Estado e das suas regulamentações da sociedade, seja na esfera pública, seja na vida doméstica. Esse distanciamento do controle estatal tem reflexos diretos na configuração da sociedade hoje: extremamente subjetivista, excessivamente consumista, voltada para seus próprios anseios, vinculada a uma contínua lógica sedutora e cada vez menos preocupada com padrões e estereótipos.

            Nesse contexto, as instituições tradicionais são esvaziadas de sentido e de possibilidades de conexão com as pessoas, gerando uma crescente liberdade nas escolhas, o aumento de caminhos para a satisfação da identidade e da autorrealização do seu “eu”. Assim, família, religião, poder público e as próprias escolas/universidades deixam de significar segurança, confiabilidade e esteio, dano espaço a um “vazio” permanente que, por consequência, empurra o próprio cidadão para desmobilização do espaço público e recriação da individualidade sob perspectiva absolutamente narcisística.

            O filósofo francês Gilles Lipovetsky tratou da temática em livro emblemático do início dos anos 1980 (“A era do vazio – Ensaio sobre o individualismo contemporâneo”), que tem sua atualidade realçada pelo império da tecnologia, das redes sociais, da indiferença, da busca incessante de sentido nas novas formas de religiosidade, da tendência de permanente análise psicológica dos comportamentos, da autoexposição (muitas vezes ridícula) promovia pelo mercado e da venda da pessoa como produto pelos infinitos labirintos da internet.  

Especificamente em relação à família, o esvaziamento de sentido dessa geração transforma as manifestações íntimas, flexibiliza as convenções sociais e mergulha os indivíduos na égide de desenvolvimento da personalidade particularizada, que legitima a família de acordo com aspirações peculiares.

Nas palavras do importante autor: “O ideal moderno de subordinação do individual às regras racionais coletivas foi pulverizado. O processo de personalização promoveu e encarou maciçamente um valor fundamental, o da realização pessoal, do respeito pela singularidade subjetiva, da personalidade incomparável (...). Sem dúvidas, o direito de o indivíduo ser absolutamente ele próprio, de fruir ao máximo a vida, é inseparável de uma sociedade que erigiu o indivíduo livre em valor principal. (...) Viver livre e sem coação, escolher sem restrições o seu modo de existência: não há outro fator social e cultural mais significativo quanto ao nosso tempo; não há inspiração nem desejo mais legítimos aos olhos dos nossos contemporâneos.”[2]

O Direito de Família, por sua atribuição de se debruçar sobre a família como ela é, não fica, por óbvio, imune ao individualismo do nosso tempo. Observe-se que o “vazio” na família contemporânea não diz respeito tão somente a pessoas de comportamento ameninado, à futilidade da sociedade de massas ou à puerilidade das redes sociais, mas a estruturas familiares órfãs de modelos de controle da geração anterior, que procuram permanentemente encontrar seu lugar ao sol do mundo jurídico, seja pela afirmação das suas individualidades, seja pela judicialização cada vez maior da vida privada. 

Essas fronteiras do Direito de Família na era do vazio são reflexos de uma lei pensada e projetada para modelos da modernidade, mas que atravessou quase inalterada a pós-modernidade e chegou à hipermodernidade desatualizada, cansada e com diminuição na sua utilidade prática. O Código Civil em matéria de Direito de Família perde, progressivamente, seu poder simbólico e deixa sua função estabilizadora da sociedade para assumir feição cada vez mais alquebrada, esfalfada e exaurida por uma geração em completa transformação. 

Interessante observar, inclusive, que o individualismo atual afasta os indivíduos de uma noção de solidariedade, tão decantada pelo Direito de Família contemporâneo, erigido a princípio constitucional no Brasil, mas que tem pouco ou nenhuma aplicabilidade concreta nas relações reais. A solidariedade em si opõe-se flagrantemente ao contexto de valorização da autonomia individual na busca da liberdade e da plena satisfação das inclinações pessoais. Na família, por óbvio, não é diferente, de forma que a noção de solidariedade familiar se torna cada vez mais acadêmica e menos conectada com a realidade, como vem ocorrendo com o Direito de Família codificado, que perde espaço, função e poder simbólico na atualidade.

Lipovestky aponta que uma das características da hipermodernidade é o afastamento do  Estado também em relação a sua função de estabelecer as regras jurídicas, dando espaço à privatização das normas, criadas individualmente para cada situação específica, por grupos, indivíduos ou famílias. O estabelecimento das próprias regras, que vem sendo tratado no Direito de Família ocidental contemporâneo como “contratualização das relações de família” é um dos efeitos desse contexto mais amplo. A perda da importância do Estado na organização das leis e das regras alcança todas as áreas e impacta a função atual do Legislativo e, por consequência, do Judiciário. Anote-se que, nesse ponto, ao contrário do que pode parecer, a tese de Lipovetsky se aproxima do conceito de sociedade líquida /vida líquida/ amor líquido de seu contemporâneo Zygmunt Bauman.

Assim, reconhecer a possibilidade de que as pessoas construam regras privadas, individualizadas para suas demandas específicas de família e Direito de Família - quando for necessário e cabível – é natural da chamada “era do vazio”, em que a conduta das pessoas se distancia da supervisão do Estado e os cidadãos assumem o controle das deliberações pessoais sem a legitimação dos órgãos públicos, repita-se, quando for juridicamente possível, em respeito aos parâmetros de observância dos limites de interferência ou não interferência estatal.

Importante destacar que, nesse contexto, a tradicional distinção entre normas de ordem pública ou normas de ordem privada vai sendo, aos poucos, repensada. Isso ocorre porque as famílias vão se distanciando do Estado, e é cada vez menor a relação dos entes jurídicos mais tradicionais com os indivíduos. Daí o profundo individualismo também no Direito de Família, que acentua a distância do poder público. Assim, ao invés de indagar se estamos diante ou não de normas cogentes, a perspectiva passa a ser questionar se as pactuações familiares ferem a dignidade da pessoa humana, desrespeitam a igualdade entre homens e mulheres, desconsideram a situação peculiar de crianças, adolescentes, idosos ou portadores de deficiência, deixam de coibir a violência doméstica ou dão tratamento diferenciado aos filhos, por exemplo, mas sempre com análise a ser realizada no caso concreto, a fim de não tolher a conquista histórica da hipótese de que cada família crie suas próprias regras de Direito de Família. Ou seja: o indivíduo se comporta como se fosse o próprio Estado.

Através de um processo civilizatório mais antigo, o Estado assumiu o controle dos indivíduos, mas tal controle não foi capaz de dar vazão às demandas de uma sociedade hipercomplexa e multifacetada. Tomando-se o Direito de Família, então, como exemplo desse controle do Estado sobre a vida íntima das pessoas, resta patente a distância que existe entre os anseios da “família hipermoderna” e o modelo codificado de Direito de Família, regulador que é das manifestações afetivas, sexuais, reprodutivas e familiares dos temos atuais. 

Tomando por base o pensamento do autor referenciado (que, diga-se de passagem, é uma visão pessimista do mundo) a hipermodernidade é a superação do conceito de pós-modernidade na qual, no âmbito do Direito de Família, os contratos familiares surgem como legitimação dos indivíduos frente ao Estado. A era da hipermodernidade da família, por conseguinte, também é a era da hiperindividualidade. 

Ao longo do tempo, o Estado procurou regular os comportamentos através de um aparato político das instituições (lembre-se da família institucional), centralizando o poder através da dominação dos afetos e suas manifestações correlatas. Assim, segundo Lipovetsky, quanto mais o Estado regular as relações interpessoais, mais se amplia a distância entre os indivíduos e as regras estatais, e mais se legitima a criação de “leis próprias”. É como se ocorresse uma espécie de “isolamento” dos indivíduos e das famílias, que deixam de se sentir representadas pelas instituições já mencionadas.

A “era do vazio” provoca uma nova cultura, e essa cultura é alicerçada no individualismo. Está em vigor uma reorganização da sociedade, que substitui o homem político pelo homem psicológico, onde ele determina seus próprios valores, distante que está dos parâmetros institucionais e do Estado. Religião, moral e bons costumes tendem a diminuir de importância e as famílias passam a se guiar pelo “direito de ser elas mesmas”, ou – o que é ainda mais contundente – pela criação dos seus próprios valores. 

A família hipermoderna tende a se fechar no seu próprio universo, perdendo o interesse pelo que está ao seu redor e realiza um processo de isolamento mais contínuo. Os indivíduos se fecham cada vez mais, seja nas redes sociais, no culto ao próprio corpo, na estilística da moda passageira (outro tema profundamente tratado pelo autor no livro  “O império do efêmero - 1989”), no hiperconsumismo, etc.

Tal família – e seu desdobramento jurídico no Direito de Família, passa a administrar seu capital estético, seu capital afetivo, seu capital  psíquico e  seu capital erótico. Ou seja: o controle da família passa a ser exercido pela própria família.  Trata-se de uma espécie de desencantamento que a família tem com o Estado e com as instituições. Por isso a “era do vazio” no Direito de Família, eis que a família rompe com as instituições por estar distante delas, resultando nesse individualismo profundo. Daí a crise de representação, onde as famílias não se sentem mais representadas pelas instituições, cada família no seu próprio mundo, com as respectivas vicissitudes e valores, a consequente perda do sentido de comunidade e, naturalmente, o estabelecimento das próprias regras por contratos interna corporis. Ou seja, a família padece de uma crise de representação e de valores, e o Direito de Família “sofre” junto essa metamorfose necessária.

 Daí, dentre outras consequências, a família promove sua privacidade no ambiente público (leia-se redes sociais, por exemplo) como uma tentativa quase desesperada de se adaptar ao contexto da era do vazio, tentando se ajustar ao cenário atual, ou preencher as lacunas da própria família.  

A mudança de perspectiva é enorme, contundente e profunda. Parte significativa da doutrina familiarista ainda sequer se apercebeu disso, e existe um movimento de desprezo pela área da contratualização do Direito de Família, justamente porque, para usar um termo muito caro para Gilles Lipovetsky e parafraseando o gênio de Caetano Veloso em obra monumental do cancioneiro popular brasileiro, “Narciso acha feio o que não é espelho”. Por isso é tempo de reflexão sobre o Direito de Família e o que se tem pensado e desenvolvido sobre esse ramo tão importante do Direito Civil.

 

*O presente texto trata-se de uma republicação de artigo para o site do IBDFAM, mas que foi posteriormente excluído pelo Instituto. 


[1] Pós-Doutor em Direito Civil pelo PPGD/UFPE. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e da UNIFACISA. Membro do Grupo de Pesquisas CONREP – Constitucionalização das Relações Privadas – UFPE. Advogado e parecerista. 

[2] LIPOVESTKY, Gilles. A era do vazio – Ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Editions Gallimard, 1983, p. 12.





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