setembro 06, 2018

Juiz decide "alterar disposição testamentária" por ver injustiça para com netas não contempladas na "parte disponível"



Uma decisão prolatada no interior de Minas Gerais (comarca de Guaxupé-MG), vem despertando debates acalourados país afora. Trata-se de sentença que entendeu haver discriminação entre as netas que, deliberadamente, não forma incluídas no testamento da sua avó, por terem sido filhas havidas fora do casamento por seu genitor. A demanda importa um valor significativo de 35 milhões de reais.

A regra de Direito Sucessório sobre testamentos, prevista no Código Civil, é bastante clara: na sucessão testamentária, o testador pode dispor livremente dos seus bens, deixando para quem lhe aprouver, salvo disposições em favor de concubinos, a fim de manter as regras de proteção do casamento.

Nesse sentido, não haveria incoerência na avó que "escolheu" algumas netas em detrimento de outras. Causou surpresa, assim, a decisão do magistrado que entendeu haver tratamento discriminatório entre os descendentes do segundo grau (netos), determinando que TODAS as netas fossem incluídas na disposição testamentária.

Segue, abaixo, notícia publicada no site do CONJUR, bem como artigo do Professor Lenio Streck (na sua coluna Senso Incomum), sobre o assunto.

A sentença (que me furto de publicar aqui por ser extensa) é um quase absurdo jurídico: confunde "boa-fé" com legalidade e se utiliza da deturpação dos princípios constitucionais para justificar uma péssima interpretação do Direito Sucessório. Trata-se de nítido exemplo de como a teoria do Direito Civil Constitucional, quando mal interpretada, pode gerar resultados imensamente desastrosos.

Finalmente, compartilho os links de duas colunas do grande Professor José Fernando Simão sobre o mesmo tema, que chamou, ironicamente, de "testamento magistral":

https://www.conjur.com.br/2018-ago-05/processo-familiar-testamento-magistral-figura-criada-guaxupe-parte

https://www.conjur.com.br/2018-ago-12/processo-familiar-testamento-magistral-figura-criada-guaxupe-parte

Boa leitura a todos!
............................................

LIMITES CONSTITUCIONAIS

Por ver discriminação, juiz inclui netas de relação não matrimonial em testamento

Se a Constituição veda aos pais discriminação entre filhos havidos ou não no casamento, essa proteção também se estende aos avós em relação aos netos.
Com esse entendimento, o juiz Milton Biagioni Furquim, de Guaxupé (MG), determinou que duas netas sejam incluídas na partilha da avó, que tinha excluído ambas do testamento por serem fruto de relacionamento não matrimonial do pai.
De acordo com o juiz, ainda que a autora do testamento possa dispor livremente da parte disponível da herança, esse direito encontra limitações constitucionais, devendo o Poder Judiciário afastar esses abusos.
Na ação, as duas netas afirmaram que foram excluídas do testamento por serem fruto de relacionamento não matrimonial do pai. Dos sete netos, a avó deixou de fora apenas as duas. O valor atribuído a causa é de R$ 35 milhões.
Ao proferir sentença parcial de mérito, Furquim reconheceu que houve abuso de direito por parte da avó e que é possível a intervenção do Judiciário. "A última vontade da testadora, assim como todos os atos jurídicos, de esfera pública ou particular, devem ser compatíveis com os instrumentos normativos de hierarquia superior, podendo sofrer controle de legalidade, supra legalidade e/ou constitucionalidade", afirmou.
O juiz lembrou que a Constituição Federal de 1988 aboliu toda diferenciação entre filhos legítimos, ilegítimos ou adotados, sem qualquer ressalva de situações preexistentes. "A igualdade e a não discriminação dos filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, é imperativo imposto pela ordem constitucional vigente que o intérprete da lei civil não pode ignorar quando se confronta com uma questão como a sob foco."
Para o magistrado, não haveria discriminação se a avó tivesse aquinhoado terceiros ou apenas um ou dois entre tantos netos. No entanto, explicou, houve disposição em favor de cinco dos sete netos, deixando de fora apenas as duas netas concebidas por um de seus filhos em relação não marital.
"O princípio constitucional que impede a discriminação dos filhos para todo e qualquer fim, especialmente para fins sucessórios, é proteção que, em relação aos avós, obviamente se estende aos netos, que são filhos dos filhos daquela. Até porque, o caput do artigo 227, da CF/88, confere um dever a que a família coloque seus membros a salvo de sofrerem discriminação ou lesão à sua dignidade e/ou aos seus direitos, inclusive patrimoniais", registrou o juiz.
Na decisão, ele disse ainda que chama a atenção o fato de o testamento contemplar exatamente os cinco netos e, ao mesmo tempo, de forma indisfarçavelmente discriminatória, não contempla as outras duas netas.
"Ora, o direito não tolera o abuso. Não tolera que, no exercício de um direito reconhecido, o agente, ao exercê-lo, exceda manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes", complementou.
Furquim afirmou também que o tratamento discriminatório, além de contaminar a essência da igualdade familiar, acarretará em discrepância ainda maior em razão da magnitude do patrimônio. "No seio da mesma família, por força da discriminação imposta, um verdadeiro abismo se formará entre os primos, uns milionários, e outras, em petição de miséria."
Segundo o magistrado, essa situação atenta contra a dignidade da pessoa humana, além de desvirtuar o instituto do testamento para, através dele, dar vazão aos chamados planejamentos sucessórios. Assim, reconhecendo o tratamento discriminatório dispensado pela avó, o juiz declarou o direito das netas de serem incluídas na partilha.

.................................
SENSO INCOMUM

Para juiz, vovó pode testar para Lenio, mas não para netos queridos

Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Resumo: Para juiz, vovó poderia dar dinheiro para Lenio, Bolsonaro ou Flamengo, mas não para os netos mais queridos.
Uma sentença absolutamente voluntarista vinda de Minas Gerais me faz voltar a um assunto pela enésima vez. Falo da Freirechtslehre, a Escola do Direito Livre. De forma breve, retomo:
“[f]undada por Hermann Kantorowicz (1906, A Luta pela Ciência do Direito), essa doutrina defende — atenção! — para a época — a plena liberdade do juiz no momento de decidir os litígios, podendo, até mesmo, confrontar o que reza a lei. O juiz não estaria lançando mão apenas do seu poder decisório, mas, mais do que isso, a sua função de legislador, seu poder legiferante para encontrar aquilo que ele, juiz, percebe como ‘o justo’.”
Uma observação necessária: Como venho mostrando — e especialmente farei isso nesta coluna — setores do Judiciário chegaram ao ponto de radicalizar para além da Escola do Direito Livre. Afinal, ainda que o movimento (i) fosse cético quanto ao Direito e (ii) defendesse uma espécie de atuação legislativa do julgador, atendendo às vontades sociais (contingentes, diferenciando-se assim do jusnaturalismo lato sensu),[1ainda assim, Kantorowicz pregava sua tese a partir das lacunas, isto é, a partir da ideia de que o Direito não é um sistema completo capaz de prever todas as hipóteses de aplicação. É aí que entra a ideia de "Direito Livre". Aqui, no Brasil, o Direito parece ser livre desde-já-sempre.
Um “bom” exemplo dessa livre apreciação do Direito foi dada na decisão acima linkada, pela qual o juiz criou um novo dispositivo do Código Civil, para arrepio de civilistas da cepa como Otávio Luiz Rodrigues Jr e a doutrina alemã de gente como Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt.
Pois não é que o juiz, por sua opinião pessoal, decidiu que duas netas fossem incluídas na partilha da avó, que tinha excluído ambas do testamento por serem fruto de relacionamento não matrimonial do pai? Na verdade, essa motivação — fruto de relacionamento não matrimonial — não consta no testamento. É ilação do juiz. Para o Sua Excelência, ainda que a autora do testamento possa dispor livremente da parte disponível da herança, esse direito encontra limitações constitucionais, devendo o Poder Judiciário afastar esses abusos.
Para o juiz, tudo é público. O Direito Civil e o Código Civil não podem dispor disso. Afinal, é tal da constitucionalização do Direito Civil, tirando qualquer autonomia desse ramo do Direito. Goste-se ou não do instituto do testamento, critique-se-o à vontade. No entanto, há 126 referências a testamento no CC, que é bem novinho, aliás (2002). A pergunta é: por que não atiramos fora o Código Civil e ficamos só com a Constituição e com a opinião pessoal dos juízes sobre o sentido da CF? Logo, logo, teremos que fazer licitação pública para casamento de filhas e coisas do gênero, se me permitem a ironia. Afinal, algum pretendente pode alegar que foi preterido pela moça e entrar com mandado de segurança baseado no princípio do amor ou coisas do gênero.
Na aludida ação, as duas netas afirmaram que foram excluídas do testamento por serem fruto de relacionamento não matrimonial do pai. Dos sete netos, a avó deixou de fora apenas as duas. O valor atribuído a causa é de R$ 35 milhões.
Veja-se: Para o magistrado, não haveria discriminação se a avó tivesse aquinhoado terceiros ou apenas um ou dois entre tantos netos. No entanto, explicou o juiz, houve disposição em favor de cinco dos sete netos, deixando de fora apenas as duas netas concebidas por um de seus filhos em relação não marital. Quer dizer que a vovó poderia ter dado o dinheiro para o Flamengo, mas não para as netas preferidas dela. Que tal?
Diz o juiz: "Ora, o direito não tolera o abuso”. Concordo. Por exemplo, Vossa Excelência acabou de cair em uma contradição performativa, porque, exatamente, julgou contra o claro texto de lei, sem amparo na Constituição. Como se chama a isto — julgar contra texto legal expresso, claro e sobre o qual até hoje ninguém teve dúvidas?
Ora, a vovó pode dispor em seu testamento livremente (qual é a parte do “livremente” que não ficou clara?) da-metade-de-seus-bens. Pode dar para Lenio Streck. Pode dar para os comentaristas do ConJur (por exemplo, para o Pantagruel). Por que não poderia dar para os seus netos ou mendigos ou jogadores de futebol preferidos? A outra metade é que ela não dispõe.
Pior é que aparecerão opiniões do tipo “interessante a decisão”. Ou: “o direito de testar não é absoluto (por que, se o CC diz que a metade o testador dispõe livremente?). Ou “chega de discriminação de netos”. Ou “abaixo a ditadura dos testamentos”. Outros até defenderão que o juiz seja consultado antes da feitura do testamento. Ou alguém defenderá audiência publica para a feitura do testamento. Quem sabe amicus curiae?
Nem vou falar do restante da sentença. Um comentarista da ConJur(WLStorer (Advogado Autônomo - Previdenciária) já o fez. Vejam:
"O valor atribuído a causa é de R$ 35 milhões.
(...) O juiz concede a "assistência judiciária gratuita" às requerentes, mas condena os requeridos no "pagamento das custas e despesas processuais e honorários advocatícios sucumbências, o qual fixou no importe correspondente à 15% do valor do proveito econômico obtido pelas requerentes".
E vejam que interessante: ‘Esclareço, visando a evitar surpresa aos réus, que o recurso cabível contra a presente sentença antecipada de mérito (fracionada) é o de agravo de instrumento, nos termos do art., 356, §5º, do NCPC."
Os advogados deveriam pedir ao juiz que, se não fosse incomodo, também fornecesse um modelo de Agravo de Instrumento’”.
O comentarista foi na veia.
Em síntese, no mundo mágico de Sua Excelência, o testador poderia ter deixado tudo para a campanha do Bolsonaro ou para o Greenpeace. Seu problema está em ter netos prediletos. E se fosse o contrário? Se a avó desse toda a parte disponível (!!!!) para os netos “bilaterais”, aí estaria tudo bem? E desde quando o testador tem de motivar o ato de disposição?
Por fim, além dos problemas de direito livre, voluntarismo, subjetivismo, etc, há outros. Trata-se de um queijo suíço. A doutrina citada não alberga a tese. Só se for por arrastamento. Apenas citou doutrina que falam do valor da Constituição e coisas do gênero. Também não há qualquer jurisprudência. Logo, não houve qualquer fundamento para superar o artigo 926 do CPC. Até hoje ninguém decidiu pela invalidade ou reinterpretação do dispositivo do CC que trata do testamento. Cadê o ônus argumentativo do juiz? Flagrante violação também do artigo 489 do CPC.
Enfim, até quando iremos aguentar essa paixão desenfreada por coisas como Escola do Direito Livre ou correntes antidemocráticas do gênero?
...................














Nenhum comentário:

Postar um comentário