Ingrid Pinto Cardoso Araújo
RESUMO
A internet transformou as relações pessoais e com isso trouxe novos
cenários paras as relações conjugais. A facilidade de se comunicar
através da rede de forma mais sigilosa possibilitou que pessoas casadas
iniciassem relacionamentos extraconjugais virtuais, sem contato físico.
Diante disso, instalou-se um debate jurídico sobre a possibilidade de
relacionamentos virtuais configurarem infração ao dever de fidelidade
recíproca entre os cônjuges, capitulado no art. 1.566 do Código Civil,
dentre os deveres matrimoniais. Parte da doutrina entende que não há
infidelidade vez que não há relação sexual. Em contrapartida, alguns
autores defendem que a infidelidade é um conceito mais amplo do que o de
adultério, prescindindo de conjunção carnal. Diante desse quadro, a
metodologia aplicada nessa pesquisa utilizou o método de abordagem
dialético, mostrando as diversas opiniões dos autores que tratam do
assunto. Assim, o objetivo desse trabalho é analisar a possibilidade de
enquadramento dos relacionamentos na web como infidelidade virtual,
levantando a discussão da admissibilidade da prova obtida pelo cônjuge
traído através da invasão à privacidade do cônjuge traidor e a
existência de configuração de dano moral, utilizando o método de
abordagem final qualitativo para que, após a avaliação dos
posicionamentos trazidos, seja alcançado um resultado condizente com a
realidade prática para a relação conjugal.
PALAVRAS-CHAVE: Internet. Infidelidade. Casamento. Relacionamento virtual. Dano moral.
ABSTRACT
The internet has transformed the personal relationships and with it
brought new scenarios for the marital relations. The ease of
communicating over the network in a more secretive enabled married
people they conduct extramarital relationships, without physical
contact. Whereupon, he settled a legal debate about the possibility of
virtual relationships configure infraction to duty of mutual loyalty
between spouses, capitulated far in art. 1,566 of the Civil Code, one of
the Consortium. Part of the doctrine understands that there is no
infidelity because there is no sexual relationship. On the other hand,
some authors argue that the infidelity is a broader concept than that of
adultery, precluding carnal knowledge. In this context, the methodology
applied in this research used the method of dialectical approach,
showing the various opinions of authors that deal with the subject.
Thus, the objective of this work is to analyze the possibility of a
framework of relationships on the web as virtual infidelity, raising
discussion on the admissibility of the evidence obtained by the betrayed
spouse through invasion of the privacy of spouse traitor and the
existence of moral damage setting, using the method of final approach to
qualitative assessment of positions brought, is achieved a result
consistent with the practical reality to the marital relationship.
KEYWORDS: Internet. Infidelity. Marriage. Virtual relationship. Moral damage.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O surgimento da internet e
a influência no relacionamento; 3. O dever de fidelidade recíproca; 4.
Infidelidade.; 4.1 Infidelidade no meio virtual; 5. Provas ilícitas e o
Direito de Família; 6. Dano moral; 7. Conclusão; Referências
bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
O Código Civil estipula no artigo 1.566, I que é dever de ambos os
cônjuges a fidelidade recíproca. Esse dispositivo reproduz a redação do
código anterior que era eminentemente patrimonialista. Discute-se,
doutrinariamente, que a imposição desse dever aos cônjuges seria somente
com a finalidade de proteger o patrimônio – já que não há que se falar
em prole ilegítima –, pois o Estado não deve intervir nas relações
conjugais com tanta profundidade.
Em contrapartida, há quem defenda que a fidelidade está inserida num
conceito mais amplo, o de lealdade, que deve pautar todas as relações,
não só as conjugais ou de união estável. A exclusividade de parceiro
seria condição básica para a mantença de lealdade entre os cônjuges,
ferindo esse dever o que mantiver relações com terceiro.
Essa discussão se tornou ainda mais calorosa e atual com o surgimento
de uma ferramenta tecnológica – a internet – que possibilita contato com
pessoas de diversos lugares sem a necessidade de um convívio diário, de
apresentações reais e de divisão de vida.
Dessa forma, o advento da internet modificou profundamente a vida das
pessoais, inclusive as suas relações. Através dela ficou mais fácil se
comunicar, aproximando pessoas antes separadas pela distância
geográfica, bem como proporcionou a existência de um relacionamento sem
contato físico, meramente virtual.
Comumente se veem amizades que só existem na rede, entre pessoas que
nunca se encontraram pessoalmente e que possivelmente nunca se
encontrarão. Esse artifício também deu ensejo aos “relacionamentos
extraconjugais virtuais”, ou seja, quando um dos cônjuges passa a se
relacionar de forma íntima com outra pessoa apenas através da internet.
A partir daí surgem questionamentos de ordem pessoal: se isso
acontecesse com você, acharia que é traição? Trair é apenas ter relação
sexual com estranho ao casamento? Trair é ter envolvimento sentimental
com outro? Buscar satisfação sexual de forma virtual é trair? Você se
sentiria ofendido na sua dignidade com esse fato? Também surgem
questionamentos de ordem jurídica: manter envolvimento com terceiro
através da internet fere o dever de fidelidade? Ensejaria a indenização
por dano moral ao cônjuge “traído”? Como seria a prova dessa
infidelidade? Seria admitida pelo ordenamento?
O presente estudo objetiva solucionar tais questionamentos,
colacionando os argumentos dos autores que versam sobre o tema, de forma
a buscar o entendimento que melhor se coaduna com a realidade que se
vive, para então servir de auxílio aos operadores do Direito na solução
prática dos dissídios levados ao seu conhecimento.
A metodologia a ser empregada neste trabalho utilizará como método de
abordagem o dialético, pois pretende mostrar o debate acadêmico
existente sobre o tema, expondo as mais diversas opiniões dos autores.
Fará uso em conjunto do método auxiliar comparativo, analisando os
pontos comuns e os contrapostos das visões demonstradas. Como técnica de
pesquisa, utilizar-se-á da bibliográfica, com o manejo de recursos como
livros, códigos, jurisprudências, revistas, sites, artigos científicos.
O método de abordagem final aplicado será o qualitativo, pois irá
avaliar os enfoques doutrinários, buscando atingir um resultado coerente
com a atualidade prática.
O Direito tem o papel de acompanhar o desenvolvimento da sociedade,
visando à proteção das relações interpessoais e sociais. Estudar a
infidelidade virtual, diante do seu revés contemporâneo, é de extrema
importância para se compreender a dinâmica das relações e sua evolução
de acordo com seu tempo, já que é sabido que a ciência jurídica não
consegue acompanhar as inovações trazidas pela informática.
Portanto, a relevância desse artigo é justamente discutir essas
questões, tão atuais, trazendo os argumentos de estudiosos do assunto a
fim de elucidá-las de maneira clara, precisa e técnica.
2 O SURGIMENTO DA INTERNET E A INFLUÊNCIA NO RELACIONAMENTO
A Internet teve origem no final dos anos 60, período em que essa
tecnologia foi desenvolvida para auxiliar na atividade militar
norte-americana, criando uma rede de computadores interligados. Assim,
As redes de computadores tiveram sua gênese nos Estados Unidos, durante
a Guerra Fria, no final dos anos 60, surgindo inicialmente como projeto
militar que objetivava estabelecer um sistema de informações
descentralizado e independente em relação ao governo, que mantivesse a
comunicação entre os cientistas e engenheiros militares mesmo no caso de
eventual ataque à capital norte-americana. Dessa forma, os militares
interligaram os computadores dos funcionários do Departamento de Defesa
dos Estados Unidos, construindo uma rede fechada de acesso exclusivo de
seus integrantes, sob a denominação preliminar de ARPANET.
[2]
No Brasil, começou a ser utilizada em 1988, no entanto ficou restrita
às universidades para uso em pesquisas. Apenas em 1995, com a edição da
Portaria 148/95, foi possível a comercialização do acesso à Internet,
por meio dos provedores.
[3] Diz Maria Lúcia Avelar Ferreira Paulino que “a primeira conexão real à
Internet no Brasil ocorreu em 1991, através da Fapesp, mas só em 1994 os primeiros servidores
Word Wide Web (WWW) entraram em funcionamento.”
[4] (Grifo do autor)
Desde então, o número de pessoas que navegam na Internet cresce em
proporção extraordinária. Atualmente, pouco mais de 188 milhões de
brasileiros usam essa tecnologia.
[5] Sobre o assunto aborda Corrêa
apud Oraci Maria Grasselli,
A utilização da Grande Rede cresce assustadoramente, constituindo um
verdadeiro fenômeno mundial, representando um mercado superior à marca
de 50 bilhões de dólares até 2005. Isso se deve ao grande número de
pessoas proprietárias de microcomputadores pessoais, conectando-se aos
serviços públicos da Rede por meio da inscrição junto ao ‘provedores de
acesso’, estes, as várias empresas responsáveis pela distribuição do
sinal da internet.
Devido ao largo espectro de sua abrangência, além de atrair usuários
domésticos, a internet também atrai grande número de organizações
comerciais conhecedoras das estimativas relativas a sua popularização e
capacidade de produzir lucros. É estimado que mais de 200 milhões de
pessoas espalhadas pelo mundo são usuários da internet, e a estimativa é
que mais de 700 milhões passem a integrá-la até o ano de 2010.
[6]
O crescimento da abrangência da internet é assustador. O tempo para sua
expansão parece transformar anos em dias, tamanha é a sua velocidade.
Impressionante é o dado trazido por Luiz Alberto Ferla
Em 2020, daqui a 7 anos apenas, a população mundial estará totalmente
conectada. Em apenas 7 anos a internet estará acessível até mesmo em
partes do mundo onde não há eletricidade ou faltam serviços básicos como
água limpa, por exemplo. É o que prevê o presidente do conselho
executivo do Google, Eric Schmidt. Se isso soar como utopia, atente para
o fato de que até o final deste ano 2,7 bilhões de pessoas – ou seja,
39% da população do mundo, estará usando a internet. A informação é da
União Internacional de Telecomunicações.
[7]
É inegável que a sociedade contemporânea está totalmente atrelada a
tecnologia da Internet. As pessoas utilizam os serviços da rede de forma
tão rotineira que não se dão conta da evolução tecnológica que vivem.
Hoje, pensar em viver num mundo sem internet parece ser algo surreal.
Acostumou-se tão facilmente com o desenvolvimento trazido por ela que
não se tem tempo de perceber as inovações que gera.
Uma dessas inovações foi com certeza a comunicação pessoal através da
rede. Atualmente, as pessoas interagem cada vez mais através da
internet, seja por aplicativos nos celulares ou por meio dos tão comuns
sites de relacionamentos. Isso se deu por vários motivos, como o baixo
custo, a comodidade, a segurança diante do mundo violento, a
instantaneidade e o anonimato. Demonstrando tal perspectiva, informa
Raphael Fernando Pinheiro
No Brasil, 99% dos usuários que utilizam a internet visitam sites de
redes socais, só perdendo para os Estados Unidos que conta com um índice
de 99, 7%, em relação ao
Facebook, rede social mais utilizada
no mundo, nosso país alcança a 12° posição de usuários – aproximadamente
13 milhões de pessoas – número que vem aumentando com a popularização
da plataforma. Já em relação ao Orkut, rede social pertencente à empresa
Google Inc., o número de usuários brasileiros ultrapassa 30 milhões.
[8] (Grifo do autor)
Por consequência da crescente utilização da internet e sua inserção no
cotidiano do indivíduo, várias foram as áreas influenciadas por essa
ferramenta. Atendo-se ao objeto de estudo, as relações pessoais sofreram
forte interferência da internet, criando cenários antes inimagináveis.
Há pouco mais de 20 anos, não se cogitava a hipótese de iniciar um
relacionamento amoroso pelo computador, quiçá manter um relacionamento
virtual. Com a velocidade das inovações tecnológicas, atualmente vários
são os exemplos de pessoas que mantiveram ou mantêm uma relação desse
tipo. Explica Andréia Schmidt apud Raphael Fernando Pinheiro
Os tempos mudaram. Há alguns anos, as amizades — ou algo mais —
começavam quando as pessoas se encontravam (fosse do jeito que fosse),
conheciam-se e achavam que tinham algo a ver. Mesmo que a amizade se
desenvolvesse por telefone ou por carta, o mínimo que poderia esperar é
que as pessoas se conhecessem ao vivo. Namoro com um desconhecido? Isso
era considerado “loucura” ou um tipo de romantismo completamente fora de
moda. Eis, então, que surge a Internet e tudo isso parece virar de
cabeça para baixo [...] Pela rede, é possível ser bonito, desinibido,
engraçado, conquistador ou qualquer outra coisa que se queira. Tudo isso
com um risco mínimo, já que a pessoa do outro computador não tem a
menor idéia de com quem está conversando [...]
[9]
Ademais, a web passou a ser um campo de busca de parceiros, seja
amoroso ou sexual, através dos pioneiros chats e das atuais redes
sociais. Dado interessante – que com certeza tem significado para os
relacionamentos virtuais – é trazido por Adriana Mendes dos Santos
Uma das mudanças trazidas pela Internet no campo das relações humanas
foi no que diz respeito ao comportamento sexual. A Revista Veja falou
sobre um levantamento que mostra que 60% das páginas visitadas na
Internet têm algum conteúdo sexual. Além disso, a publicação destaca que
a palavra
sex é a mais escrita nos
sites de busca em todo o mundo.
[10]
E é nesse cenário que os relacionamentos virtuais nascem. Surgem como
fuga da rotina e parecem trazer à realidade o encantamento que o
dia-a-dia esconde. Na web, as pessoas idealizam o outro e não são
contrariados, já que no mundo virtual se é quem se deseja ser, longe dos
defeitos que só no real transparecem. Por isso que as conversas
tornam-se cada vez mais atrativas e estimulantes, pois se acredita que
enfim há alguém que o completa verdadeiramente, reascendendo as
fantasias esquecidas.
Nesse contexto, aponta Laura de Toledo Ponzoni
Muitas vezes a rotina deteriora os relacionamentos, sejam eles formados
pelo casamento ou pela união estável. O relacionamento com um terceiro
torna-se uma decorrência desse estado de carência afetiva. Na Internet, a
figura idealizada do outro não enfrenta o desgaste da convivência. O
que se idealiza sempre é melhor do que se tem. Na comunicação virtual
acontece a construção de uma espécie de “realidade de segunda ordem”.
Portanto, o espaço virtual se presta como nenhum outro à fuga da
realidade frustrante.
[11]
Outrossim, na internet, essas conversações fazem parecer para o cônjuge
que as utiliza, que ali ele está seguro no seu “mundinho secreto” e que
ninguém nunca saberá o que e com quem se fala. Afirma Maria Berenice
Dias que
A correspondência virtual se presta, como nenhum outro meio, à fuga da
realidade frustrante. Abriram-se, assim, as portas para os encontros,
confidências e intimidades, tudo protegido pelo anonimato. Nos campos
dos relacionamentos afetivos, o uso do computador possibilitou a
utilização do véu virtual, rompendo com a necessidade antes inafastável
do contato físico.
[12]
Diante disso, a maioria das pessoas casadas que inicia uma conversa na
internet, através de chats ou das redes sociais, acredita não haver
problema na sua ação, tendo em vista que não há contato físico (e de
início, acredita-se que não haverá). A Universidade da Flórida,
pesquisando o assunto, concluiu exatamente isso. Das pessoas casadas que
mantiveram relacionamentos virtuais, 83% não considerou tal ato como
infidelidade.
[13]
Porém, no fundo a consciência não está de todo tranquila, pois essa
conversa passa a ser segredo, o qual não divide com seu cônjuge.
E, nesse ponto, é que os conflitos conjugais surgem. O cônjuge que
descobre que seu parceiro está mantendo conversações com outrem através
do computador (ou celular), sente-se ofendido e desrespeitado,
considerando tal atitude uma traição (Sobre isso, tratar-se-á mais
detalhadamente no tópico 4).
3 O DEVER DE FIDELIDADE RECÍPROCA
O casamento impõe aos nubentes regras jurídicas que são de fundamental
importância para que o casal mantenha uma relação harmoniosa, em que a
comunhão de vida não implique na mitigação da esfera particular,
individual de cada cônjuge. Para isso, o legislador estabeleceu no
ordenamento jurídico pátrio os deveres de ambos os consortes na
constância do casamento.
Os deveres matrimoniais estão previstos no Código Civil no artigo
1.566, o qual traz em seu inciso I o dever de fidelidade recíproca. Já
para a união estável, o legislador elegeu a lealdade como dever dos
companheiros, disposto no artigo 1.724, tratando os dois vocábulos como
de mesmo significado. Contudo, não são os verbetes sinônimos, sendo a
lealdade mais abrangente do que a fidelidade.
[14]
A fidelidade restringe-se à exclusividade de parceiro afetivo-sexual,
enquanto que a lealdade, englobando a fidelidade, refere-se à
honestidade, sinceridade, franqueza que deve existir entre pessoas que
compartilham a vida. Para melhor elucidação, exemplificam Pablo Stolze e
Rodolfo Pamplona: “Se um cônjuge — homem ou mulher — trai o outro, há
violação do dever de fidelidade, mas, se não esconde tal fato, não se
está no campo da mentira, própria da deslealdade”.
[15]
O dever de fidelidade recíproca surgiu por preocupação do Estado em
garantir a legitimidade da prole, instituindo a monogamia como forma de
proteger o patrimônio da família. Esclarece Maria Berenice Dias
O interesse do Estado na mantença da família como base da sociedade
procura amarrar todas as pessoas dentro de uma estrutura familiar. Por
isso gera presunções de paternidade. O filho nascido na constância do
casamento presume-se filho do casal. Para dar sustentação a essa verdade
ficta, sente-se o Estado autorizado a impor regras a serem respeitadas
pelos cônjuges, inclusive durante a vigência do casamento. Assim, acaba
por obrigar à fidelidade como forma de garantir a legitimidade da prole.
A preocupação, nitidamente, é de ordem patrimonial, para assegurar a
transmissão do patrimônio familiar aos seus “legítimos sucessores”.
[16]
Atualmente, embora não se vislumbre a fidelidade unicamente como forma
de proteção ao patrimônio, não se pode olvidar que é um valor moral
arraigado à sociedade brasileira e tutelado jurisdicionalmente. Tanto é
que, as famílias paralelas e o poliamorismo ainda são vistos com
reservas. Nesse sentido, aduz Maria Helena Diniz
apud Tereza
Rodrigues Vieira: “O dever moral e jurídico de fidelidade mútua decorre
do caráter monogâmico do casamento e dos interesses superiores da
sociedade, pois constitui um dos alicerces da vida conjugal e da família
matrimonial.”
[17]
Por derradeiro, a fidelidade deve ser observada seja qual for o
ambiente em que o cônjuge se encontrar, seja ele real ou virtual.
Enuncia Jacques Camargo Penteado apud Laura Toledo Ponzoni:
A fidelidade é uma exigência ética universal e irrenunciável que tem
sua origem no Direito natural. Trata-se de uma forma particular de
justiça. Todo relacionamento humano depende dela. Traz a idéia de
estabilidade, de transparência e de reciprocidade
[18]
Ademais, considerar a fidelidade como um dever dissociado dos outros
previstos no Código Civil não traduz o significado constitucional da
família, uma instituição em que o respeito e afeto entre os membros
devem prevalecer. Nesse sentido aduz Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald
A
fidelidade recíproca (inciso I) representa a expressão natural da monogamia, erigida à altitude de
dever jurídico.
Atualmente, não se pode proceder à análise do dever de fidelidade
dissociado do dever de respeito e consideração mútuos, tratado no inciso
V do referido dispositivo legal.
[19] (Grifo do autor)
Portanto, o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges está
inserido num conceito ainda mais amplo que o de exclusividade de
parceiros, confirmando o seu caráter normativo.
Discordando de tal pensamento, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald
defendem que a fidelidade não poderia ser imposta aos cônjuges como
norma jurídica a ser cumprida, pois, a exclusividade de parceiro é opção
dos envolvidos. Escrevem
Também é conveniente lembrar a revogação do art. 240 do Código Penal
que tipificava o adultério como ilícito penal, o que, para harmonizar o
sistema jurídico, deverá projetar como consectário a supressão também
dos seus efeitos jurídicos civis. Por certo, a fidelidade não pode ser
encarada como
dever jurídico (como já fez o Código Penal)
porque as causas de infidelidade oscilam no tempo e no espaço: mudanças
na personalidade, desejo de vingança, monotonia, compensação para as
decepções sofridas, inadequado relacionamento pessoal ou social,
insatisfações sexuais...
[20] (Grifo do autor)
No entanto, não há como negar o seu caráter de norma jurídica, uma vez
que, não obstante o crime de adultério tenha sido banido do ordenamento
jurídico, o crime de bigamia ainda é previsto, demonstrando assim que a
infidelidade ainda permanece como dever conjugal.
[21]
4 A INFIDELIDADE
O casamento como instituição social – incluindo-se também a união
estável -, é regulado pelo Estado, seja pela Constituição Federal, pelo
Código Civil e por leis esparsas, como já explanado. Esse controle
social é justificado como forma de segurança aos cônjuges, ao seu
patrimônio e a sua prole. Como todo contrato, existem direitos e deveres
para ambas as partes que devem ser observados para que a função social
do mesmo seja atingida.
Dentre os deveres, está o da fidelidade recíproca (para os
companheiros, lealdade). Assim, quando um cônjuge se envolve de forma
erótico-afetiva com terceiro está violando um dos deveres do contrato
matrimonial e cabe aos cônjuges, e tão somente a eles, decidirem pela
resolução ou não desse contrato. No entanto, nem sempre se respeitou a
autonomia do casal no que se refere à infidelidade. O Estado tomava para
si a competência de julgar e punir os infiéis/adúlteros.
A infidelidade, no decorrer da história, sempre foi condenada e tratada
com grande hostilidade ao redor do mundo. Castigos físicos eram
aplicados normalmente em praça pública para que servissem de exemplos a
fim de que novos episódios de traição não ocorressem. Informa Adriana
Mendes dos Santos
Houve tempos em que as punições eram muito severas, especialmente para a
mulher. A Lei mosaica punia com a morte os culpados de adultério. No
Egito, a mulher adúltera sofria a mutilação de seu nariz e a morte era
reservada para seu amante. Na Índia, o adultério representava tanto
ofensa aos deuses como à indesejada mistura de raças, de forma que a
mulher era condenada a ser devorada por cães em praça pública. Em Roma,
segundo Ester Kosovski, a mulher era castigada com desterro e o confisco
de metade de seus bens. Na era de Justiniano, a mulher era açoitada e
ia para um mosteiro e, se após dois anos o marido não a perdoasse, as
religiosas aplicavam-lhe o castigo e a surra diante de toda a
comunidade.
[22]
Ainda hoje, pode-se perceber que alguns países continuam tratando a
infidelidade de forma bastante rígida, como é o caso do Irã,
principalmente no que se refere à infidelidade feminina. Colaciona
Adriana Mendes dos Santos
No Irã, os adúlteros são punidos pelo método religioso do apedrejamento
ou lapidação. Em uma reportagem da Revista Veja há a explicação do
método: “os homens são enterrados até a cintura com as mãos para trás;
as mulheres, até o pescoço”.76 A reportagem também fala da execução
pública de um adúltero que foi puxado na forca por um guindaste. O mais
recente caso é o da iraniana Sakineh que, em 2006 “foi acusada de manter
relações ilícitas com dois homens e sentenciada a 99 chibatadas”. A
Revista Veja informa que depois, “no julgamento da mulher suspeita de
matar seu marido, foi acusada de adultério enquanto casada e sentenciada
ao apedrejamento”. Agora estão acusando-a de ter matado o próprio
marido, o que poderá conduzi-la ao enforcamento.
[23]
No Brasil, o adultério deixou de ser crime em 2005, com a edição da Lei
11.106, não cabendo mais ao Direito Penal julgar casos de cônjuges
infiéis. Na área cível, no entanto, a infração ao dever de fidelidade
recíproca ensejou muitos pedidos de separação judicial, considerando o
infiel o culpado pela dissolução da sociedade conjugal até a edição da
Emenda Constitucional 66/2010, que exterminou de uma vez por todas a
discussão de culpa no fim de um relacionamento matrimonial.
Posto não seja crime nem fundamento para a culpa do divórcio, a
fidelidade permanece como dever do casamento, presente não só na
fidelidade recíproca, mas também no conceito de lealdade, respeito e
consideração mútuos e por que não dizer no de afeto, verdadeiro guia
para as relações amoroso-afetivas. Ademais, a exclusividade de parceiro é
condição
sine qua non para o casamento. Informa Laura Toledo
Ponzoni: “Desde os primórdios da instituição do casamento, sempre se
manteve este importante dever, que praticamente é seu pressuposto. A
mútua fidelidade é, portanto, a pedra angular do instituto do casamento,
e tal obrigação promana da índole do próprio vínculo”.
[24]
Ainda assim, a infidelidade possui um forte peso cultural. Na história
da humanidade, principalmente nas sociedades patriarcais, a traição
masculina era comum e aceita como algo natural, algo inerente ao sexo
masculino. De outra banda, a infidelidade da mulher nunca foi bem vista,
tanto é que, apesar dos avanços femininos, as mulheres ainda traem
menos do que os homens. Em uma matéria do programa Globo Reportér sobre a
infidelidade no Brasil, dados interessantes foram trazidos:
As mulheres avançam, é verdade. Mas homens ainda reinam absolutos. A
traição é em dobro: para cada mulher que trai, há dois homens sendo
infiéis. Uma pesquisa do Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas de São Paulo mostra que um dos índices menores é o do Paraná,
mas é onde 43% dos homens já traíram. Em São Paulo, 44%. Em Minas
Gerais, 52%. No Rio Grande do Sul, 60%. No Ceará, 61%. Mas os baianos
são os campeões: 64% dos homens se dizem infiéis.
[25]
Diante de tais resultados, percebe-se que a infidelidade sempre esteve,
e dificilmente deixará de estar, presente na vida do indivíduo. Anota
Maria Berenice Dias que “A fidelidade, com certeza, só se tornou lei
jurídica, isto é, um dos deveres do casamento, porque o ‘impulso’ da
infidelidade existe.”
[26]
Como acontece em outros aspectos, as motivações para a traição
masculina e a feminina são diferentes. Nos homens, a parte sexual possui
a maior influência, enquanto que nas mulheres o aspecto emocional é o
fator predominante. Esclarece Mirian Goldenberg apud Carlos Dorneles
Os motivos da traição são completamente diferentes. Homens apontam uma
natureza masculina. Eles dizem que traem por instinto, porque são
infiéis por natureza, porque é uma essência. Já as mulheres sempre
culpam os maridos. Elas traem porque os maridos não lhes dão mais
atenção, carinho, romance, glamour, companheirismo, amizade ou por
vingança.
[27]
Ressalte-se que o sentimento de infidelidade pode variar de forma
subjetiva. Cada indivíduo possui crenças relativas ao conceito de
fidelidade e o que poderia vir a violá-la. Para uns, o mero pensamento e
fantasias já configuraria traição, já para outros apenas ato sexual
viria a ser uma infidelidade. No entanto, para uma discussão jurídica a
respeito do tema é mister uma conceituação técnica.
Quando o assunto é traição, costuma-se tratar indistintamente qualquer
de suas formas como adultério. Assim, existem as figuras do quase
adultério, adultério inocente (casto ou de seringa), o adultério precoce
e o adultério virtual.
O quase adultério caracteriza-se quando pessoa casada troca carícias
com terceiro estranho ao casamento, através de beijos e abraços, mas sem
ocorrer a relação sexual.
O adultério inocente insere-se no contexto da inseminação artificial.
Seria o caso de a esposa utilizar-se, sem o consentimento do cônjuge, de
material genético de outro homem que não o seu marido para uma
fertilização ou de o cônjuge varão disponibilizar seu sêmen em clínica
especializada, às escondidas de sua esposa, e posteriormente ser
acionado numa ação de investigação de paternidade.
[28]
Já o adultério precoce acontece quando um dos cônjuges abandona o outro
de forma prematura, logo após a celebração do casamento ou mesmo na
lua-de-mel.
Finalmente, o adultério virtual seriam as “relações espúrias de afeto
ou intimidade pela via eletrônica — e-mails, chats, comunidades da
internet (a exemplo do
Orkut) — quando um ou ambos os agentes são casados.”
[29]
Como se pode vislumbrar, as denominações para os diversos tipos de
traições são desprovidas de técnica, utilizando-se adultério para
caracterizar as relações em que a conjunção carnal existe ou não.
Há – embora comumente sejam utilizados como sinônimos –, diferença
entre o conceito de adultério e de infidelidade. Entende a doutrina que
adultério é a forma mais séria da infidelidade, configurada pela
conjunção carnal de pessoa casada com estranho ao matrimônio. Já a
infidelidade abrange não só a infidelidade física (adultério) como a
moral, caracterizada pelo desrespeito amoroso para com o parceiro.
[30]
Nessa linha explica Guilherme Calmon da Gama apud Adriana Mendes dos Santos
A fidelidade envolve o dever de lealdade entre os partícipes, sob
aspectos físico e moral, no sentido de abster-se de manter relações
sexuais com terceira pessoa, e mesmo de praticar condutas que indiquem
esse propósito ainda que não consume a traição. Envolve, portanto, tanto
a infidelidade material quanto a moral com efeitos jurídicos.
[31]
Por oportuno, é válida a distinção encontrada no Dicionário Hoauiss apud Laura de Toledo Ponzoni
Adultério. 1. violação, transgressão da regra de
fidelidade conjugal imposta aos cônjuges pelo contrato matrimonial, cujo
princípio consiste em não se manter relações carnais com outrem fora do
casamento. 2. infidelidade estabelecida por relação carnal com outro(a)
parceiro(a) que não o(a) companheiro(a) habitual. Adúltero. que viola a
fidelidade conjugal ao manter relação amorosa fora do casamento. pessoa
que comete adultério, mantendo relações carnais com alguém fora do
casamento.
Infidelidade. falta de respeito, de
fidelidade àquilo com que se deveria estar comprometido. manutenção de
ligações amorosas com outra pessoa diferente daquela com quem se está
comprometido.
[32]
Feitas as distinções, verifica-se que a infidelidade ocorrida no mundo
cibernético não pode ser tratada como adultério, já que não há conjunção
carnal, carecendo de técnica a utilização de tal nomenclatura para
caracterizar a infidelidade virtual.
4.1 Infidelidade virtual
A internet, diante de suas ferramentas e facilidades, fez surgir uma
nova forma de infidelidade, a infidelidade virtual. Portanto, sendo um
espaço de tantas possibilidades, a internet passou a ser uma aliada aos
infiéis na realização de uma traição. Diante do cenário de anonimato
relativo, as pessoas se sentem mais à vontade para dar asas à sua
imaginação. Nesse contexto, é que se vislumbra o resultado de uma
pesquisa realizada pelo site Terra em que foi perguntado aos usuários se
a Internet facilitava a infidelidade. A resposta foi a seguinte:
“53,12% respondeu que sim, 3,54% respondeu que não e 43,34% respondeu
que sim, se a pessoa já está motivada a trair.”
[33]
A traição virtual é caracterizada quando pessoa casada mantém
relacionamento com outra através da internet – utilizando-se das
ferramentas de e-mail, chats, sites de relacionamento como Facebook,
webcam, e, ainda de forma mais atual e dinâmica o aplicativo Whatsapp –,
trocando mensagens amorosas, sexuais, fazendo confidências,
compartilhando sua rotina. Ou seja, passa a existir um novo parceiro em
sua vida, verdadeiro estranho ao casamento, só que dessa vez de forma
virtual, sem qualquer contato físico.
Em recente pesquisa realizada pela Universidade Católica de Pelotas,
verificou-se que os sites de relacionamento funcionam como impulsores
para traição. Dos entrevistados, 10% revela ter utilizado o site
Facebook para trair seu companheiro.
[34]
Isso acontece, pois, movido pela sensação de anonimato e curiosidade, o
indivíduo faz uso da rede para dar vazão aos seus desejos e se permitir
viver em um mundo longe dos problemas cotidianos. Destaca Alexandre
Rosa
De sorte que se sentindo relativamente seguro, quer através de
chats, Mirc, ICQ, Netmeeting, e-mail,
dentre outros, o indivíduo está coberto pelo véu-virtual e livre para
fazer voar sua imaginação, seus sentimentos irrealizáveis mais profundos
no mundo fático, servindo como fuga da realidade, danado
condições/ânimo (em muitos casos) para carregar o mundo real. Apimenta o
dia-a-dia; dá molho à realidade. Suborna o prazer com carícias
queridas-e-não-queridas advindas de alguém que não sei (nem quero) saber
quem é, e que preenche algo que não-sei-o-que-é (nem quero saber). Essa
é a situação dos navegantes do espaço virtual, tal qual o homem da
vida, rompendo os interditos, movidos pelo desejo.
[35] (Grifo do autor)
É válida também a lição de Marilene Silveira Guimarães apud Laura de Toledo Ponzoni
Muitas são as causas que motivam os relacionamentos virtuais. Uns
navegam na Internet para atender a uma necessidade natural de conhecer
pessoas, para brincar, para fazer descobertas, repetindo o que acontecia
antigamente nos relacionamentos por carta, que se iniciavam por uma
amizade sem compromisso. Outros usam os relacionamentos virtuais para
vencer a solidão, para vencer o tédio do cotidiano, para preencher
carências afetivas. Enquanto uns buscam os relacionamentos virtuais para
fugir da relação pouco gratificante que vivem na realidade, outros
também usam a sedução exercida no espaço virtual para melhorar a relação
com seus parceiros reais.
[36]
Para ilustrar, tem-se em uma das produções de Hollywood, o filme
Mensagem para você, justamente a hipótese de um relacionamento
extraconjugal pela web. Sugestiva é a sinopse encontrada no site Adoro
Cinema
Proprietária de uma pequena livraria, Kathleen (Meg Ryan) praticamente
mora com seu noivo (Greg Kinnear), mas o "trai" através da internet com
um desconhecido, pois todo dia ela manda pelo menos um e-mail para ele.
Seu misterioso amigo (Tom Hanks) também faz o mesmo e passa pela mesma
situação: "infiel" com sua noiva (Parker Posey). De repente, a vida dela
abalada com a chegada de uma enorme livraria, que pode acabar com um
negócio que da sua família há 42 anos, e ela passa a não suportar um
executivo que comanda esta mega-livraria, sem imaginar que o mesmo homem
com quem ela conversa pela internet. Após algum tempo, ele toma
consciência da situação, mas teme se revelar e muito menos dizer que se
sente atraído por ela.
[37]
Alexandre Rosa resume o filme de forma analítica
[...]
Ketlhen Keller (Meg Ryan, maravilhosa como sempre) é
dona de uma pequena livraria e vive com seu companheiro uma vida dita
normal. No dia do seu aniversário de 30 anos (isso é muito
significativo) entra num programa específico para conhecer alguém. Logo,
existe um vazio a ser preenchido. Esse vácuo não é necessariamente
sentimental-afetivo. Pode ser decorrente de uma desilusão, da
curiosidade, do interesse, da brincadeira, da carência, dentre outras
causas. Conhece, neste contexto,
Joe Fox (Tom Hanks) e começam
um relacionamento no qual existe apenas uma regra: ser inespecífico.
Dito de outra forma, se preenche o vazio (de que natureza for) com a
participação de um terceiro desconhecido. Esse terceiro é quem eu ou ele
quiser: bonito/feio, alto/magro, perfeito/defeituoso. Existe um
complexo de
Sidnelson. O enredo do filme traz consigo a inauguração de uma nova Livraria de
Joe Fox e o fechamento da de
Ketlhen Keller. Em seguida eles acabam decidindo se conhecer e – como todo filme de
Hollywood – o final é feliz, com os pombinhos ficando juntos, além de seus antigos companheiros acharem novos parceiros. [...]
[38] (Grifo do autor)
Através dessa narrativa, vislumbram-se as fases que Alexandre Rosa aponta para os relacionamentos virtuais:
-1ª fase: Seria a fase em que o indivíduo entra no bate-papo ou nos
sites de relacionamento sem qualquer objetivo traçado, mantendo o
primeiro contato com outro usuário sem qualquer motivo aparente.
Iniciada a conversa na página pública, se houver afinidade, passa-se
para um modo mais reservado, que é a próxima fase;
-2ª fase: Nesse momento, as conversas passam a ser mais pessoais,
contudo sem dar informações muito específicas, apenas assuntos em que se
busque conhecer o outro e apresentar um pouco de si, girando em torno
de hobbys, filmes preferidos, músicas... Alerta-se para o fato de que
muitas conversas param nesse estágio, sem obrigatoriedade de um contato
pessoal ou até mesmo físico.
-3ª fase: Essa é a do encontro. Depois de muita conversa online, os
amantes resolvem se conhecer pessoalmente. Como as pessoas na web se
descrevem como desejam, algumas vezes o real corresponde ao virtual e
dessa forma, nem sempre acontece a próxima fase.
- 4ª fase: Aqui, acontece o contato físico, a concretização do desejo
através da relação sexual. A partir daí as características desse
relacionamento passam a ser as mesmas de um relacionamento que não teve
sua origem na internet.
[39]
Feitas as considerações, ater-se-á ao relacionamento que interessa a
esse trabalho, que é tão somente o virtual, o que não ultrapassa as
barreiras do computador e da internet, tendo em vista, que se o mesmo
vier a existir também no mundo físico, perderá a sua natureza e se
tornará uma relação pessoal-física.
De olho no mercado da infidelidade, empresários criaram sites
específicos para casados traírem na rede com o maior sigilo e segurança
possíveis. São o canadense
Ashley Madison, o americano
Ohhtel e o holandês
Second Love,
que juntos possuem mais de 12 milhões de cadastros. Em 2011, o Brasil –
que segundo pesquisa do Instituto Tendências Digitales é o país da
América Latina com maior índice de infidelidade – importou essas
ferramentas e em pouco tempo já contava com mais de 500 mil usuários.
[40]
A proposta é criar um ambiente em que pessoas casadas possam buscar
parceiros para um relacionamento virtual, com a maior privacidade
possível. A ideia surgiu há mais de dez anos, quando o empresário Noel
Biderman, criador do Ashley Madison, percebeu que a maior causa do
descobrimento de relações extraconjugais através da web era por deslizes
dos infiéis.
[41]
Explica Rafael Sbarai
Sigilo é o pilar dos serviços de relacionamento extraconjugais. Nome,
fotos e dados de contato são, por padrão, considerados ultrassecretos e
só se tornam visíveis a outro cadastrado com consentimento do
proprietário do perfil. É o inverso do mecanismo vigente no Facebook,
por exemplo, onde (quase) todos os dados da conta são públicos, até que o
usuário decida o contrário. O Ashley Madison oferece ainda um último
recurso, a ser usado em situações emergenciais, ou seja, quando o
usuário comprometido está prestes a ser apanhado pela mulher (ou pelo
marido, no caso delas): o botão do pânico. O recurso apaga, de forma
definitiva, os registros relativos a uma conta que possam comprovar a
passagem de uma pessoa pela rede. Mais: faz uma varredura nas caixas de
mensagens de pessoas que foram alvo do assédio eletrônico do usuário
acossado, apagando textos, fotos e vídeos enviados por esse cadastrado.
Em tese, é o fim da marca de batom no colarinho.
[42]
O contato entre os usuários dos sites de “traição pela web” se dá de
forma rápida e em volume considerável. Um dos entrevistados pela
reportagem da Revista Veja, em dois meses iniciou contato virtual com 25
mulheres. De acordo com o que informa o site Ashley Madison, “em média,
um homem se comunica com 20 mulheres por mês, enquanto elas interagem
com 11 homens no mesmo período”
[43]
Diante desse panorama, vislumbra-se que a internet vem se tornando cada
vez mais um facilitador para as relações extraconjugais virtuais, seja
na sua forma mais básica, ou com a utilização das ferramentas
disponibilizadas, deixando claro a sua existência de forma inconteste.
Entretanto, para parcela da doutrina, o relacionamento virtual não se
enquadra em hipótese de infidelidade, já que não há na vida real um
“caso”. É o que entende Maria Berenice
Não cabe nominar de descumprimento do dever de fidelidade a relação
erótico-afetiva quando inexiste qualquer postura que afronte o dever de
respeito que deve reger as relações interpessoais. Ora, não há como
falar em traição quando alguém se relaciona com outro exclusivamente por
meio de trocas virtuais. Não se pode confundir o mero ciúme do cônjuge,
que se considera preterido pelo momento prazeroso desfrutado pelo
parceiro, com infidelidade ou adultério. Ninguém pode ser considerado
culpado por fazer uso de um espaço imaginário e se relacionar com uma
pessoa invisível.
[44]
Contudo, não é somente a relação sexual com terceiro que se enquadra
como violação do dever de fidelidade, mas também qualquer forma de
envolvimento afetivo. Come bem ensina Laura de Toledo Ponzoni
Podemos afirmar, portanto, que o dever de fidelidade recíproca emana do
matrimônio civil. Assim, cada cônjuge renuncia à sua liberdade sexual,
já que a fidelidade supõe exclusividade do débito conjugal, uma plena
comunhão de vida. Concebida deste modo, ocorre a violação do dever de
fidelidade conjugal quando qualquer dos cônjuges estabelece com um
terceiro um relacionamento idêntico ao que é possível estabelecer com o
outro cônjuge. Cabem aqui, portanto, a conjunção carnal ou uma mera
ligação amorosoplatônica com um estranho [...]
[45]
Negar que o relacionamento virtual não afronta o dever de fidelidade é
considerar a infidelidade como sinônimo de adultério, e inexistindo
conjunção carnal não há nenhum dever violado. Contudo, como já
demonstrado alhures, a infidelidade, por ter um alcance mais amplo,
engloba não só o adultério – esse a caracterização da infidelidade
física-, mas também a infidelidade moral – caracterizada pelo
descumprimento do dever de respeito entre os consortes. Sintetizam Pablo
Stolze e Rodolfo Pamplona
Em nosso pensar, é inteiramente improcedente o argumento daqueles que,
unidos pelo matrimônio, imaginam estar fazendo “algo inocente”, quando
mantêm íntimos diálogos como seu amante, por meio da internet. Embora,
tecnicamente, adultério não seja, dada a ausência de contato físico, a
infidelidade moral, grave da mesma maneira, é de clareza meridiana!
[46]
5 PROVAS ILÍCITAS E O DIREITO DE FAMÍLIA
Muito se discute sobre a validade da prova da infidelidade virtual,
tendo em vista que na maioria das vezes é obtida invadindo-se o e-mail
ou computador do cônjuge infiel. Por analogia, os smartphones, tablets e ipads
são equiparados aos computadores, então o que se aplica a um, aplica-se
a todos. Assim, haveria uma invasão à privacidade do indivíduo, um dos
direitos fundamentais de maior magnitude, com o fim de utilizá-la para
uma indenização no judiciário. Será que esse seria o caminho traçado
pela ponderação?
A Constituição Federal, no seu artigo 5º, consagra a inviolabilidade da vida privada e do sigilo da correspondência:
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente da sua violação;
XII – É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
[47]
Portanto, a Carta Magna buscou resguardar da intromissão de terceiros
aos aspectos mais restritos da vida humana, possibilitando a sua
mitigação apenas quando for hipótese de pro societate. Como bem salienta Dirley da Cunha Júnior apud Paulo Lépore, a norma constitucional tutela a privacidade
Tomada essa em sentido amplo para abranger todas as manifestações da
esfera íntima, privada e da personalidade das pessoas. Assim, a novel
ordem constitucional oferece, expressamente, guarida ao direito à
privacidade, que consiste fundamentalmente na faculdade que tem cada
indivíduo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida particular e
familiar. [...] Nesse sentido, a privacidade corresponde ao direito de
ser deixado em paz, ao direito de estar só (
right to be alone).
[48] (Grifo do autor)
Nesse diapasão, as conversas através de e-mail são equiparadas à
correspondência através de cartas, tendo em vista que a primeira é a
evolução da segunda, e, por conseguinte, estão inseridas na tutela de
inviabilidade da Constituição Federal. Esclarece Alexandre Rosa
Com efeito, nem mesmo o cônjuge ou companheiro pode violar esse direito
individual sem autorização. É o local do segredo íntimo, do mais
profundo isolamento. Tal qual num cofre em que o sujeito é o único
detentor da chave; constitui-se delito o ato de arrombar. Essa
privacidade é tutelada pela Constituição Federal (art. 5º, X) e somente
pode ser objeto de intromissão de terceiros ou mesmo do Estado se
configurados elementos suficientes para sacrifício desse direito
fundamental, em nome da sociedade. Bisbilhotices e curiosidades não se
prestam para sufocar esse direito fundamental, mormente numa sociedade
ávida por novidades/ curiosidades.
[49]
No que tange ao direito à produção de prova, a Carta Magna traz em seu
inciso LVI que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por
meios ilícitos.”
[50]
Dessa forma, possibilita ao indivíduo produzir provas para demonstrar o
seu direito, desde que esteja em consonância com o ordenamento
jurídico.
Sendo assim, o cônjuge que viola a privacidade do outro, invadindo sua
correspondência eletrônica, está produzindo provas em confronto com a
Constituição e, portanto, está gerando prova ilícita, inadmitida no
processo judicial brasileiro, haja vista que somente se autoriza a
mitigação da intimidade, para se obter e-mails, se houver previsão
legislativa, o que não é o caso.
[51]
Sintetizam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald “[...] Não se admite a
prova que, obtida ilicitamente, demonstre a existência das relações
extraconjugais.”
[52]
Há quem defenda a possibilidade de utilização das mensagens trocadas
através do correio eletrônico e do computador comuns entre os cônjuges,
por haver o compartilhamento das senhas e assim, não haveria que se
falar em invasão à privacidade. Nessa esteira é o pensamento de
Alexandre Rosa
Assim é que no caso de e-mails o cônjuge/companheiro não poderá
adentrar/invadir os arquivos do companheiro sem o consentimento deste,
salvante se for a conta de e-mail comum. Isto é, caso seja a conta do
provedor compartilhada pelos cônjuges/companheiros, sua entrada estaria
autorizada. Contudo havendo senhas, resguardo, o ato de vasculhar a
caixa postal implica em violação desse segredo constitucionalmente
garantido. O mesmo raciocínio serve para o ICQ, Mirc e similares. Em
suma: não pode haver intromissão arbitrária na conta do cônjuge sem o
consentimento deste.
[53]
Nessa mesma linha, decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal em
lide levada ao seu conhecimento em que a esposa requereu indenização
por danos morais com base em e-mails trocados pelo cônjuge e sua amante
que estavam no computador da família. O magistrado valorou que se o
e-mail estava gravado na memória do computador como qualquer outro
arquivo, não estava protegido por sigilo. Eis um trecho da sentença:
Assim, nas comunicações pessoais, o sigilo, que protege a invasão de
privacidade é a regra, e a disponibilização de informações em princípio
sigilosas, é exceção. Cediço que o correio eletrônico é uma inovação
tecnológica que facilita a comunicação entre as pessoas. Por certo que o
sigilo da correspondência a ele se estende.
No caso em tela, contudo, a autora alegou ter tido acesso aos textos
dos “e-mails” do requerido, por estarem guardados em arquivos no
computador de uso da família.
Ora, se o computador era de uso de todos os membros da família,
obviamente que os documentos nele arquivados eram de livre acesso a
todos que o utilizavam (esposa, marido e filho).
Logo, se o autor gravou os “e-mails” trocados com sua amante em
arquivos no computador de uso comum, não se importava de que outros
tivessem acesso ao seu conteúdo, ou, no mínimo, não teve o cuidado
necessário. Destaco que simples arquivos não estão resguardados pelo
sigilo conferido às correspondências.
Ainda que se imagine que a autora acessou o próprio correio eletrônico
do requerido, só poderia tê-lo feito mediante o uso de senha. Se a
possuía, é porque tinha autorização de seu ex-marido.
[54]
Ressalta-se ainda que, existe entendimento de que se as mensagens
privadas forem o único meio de prova da infidelidade, o cônjuge traído
pode utilizar-se de tais meios para demonstrar a verdade dos fatos.
Afirma Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona
E, em tese, anotamos que, ainda que o computador não fosse da casa, se a
única prova possível para a busca da verdade real fossem os diálogos
eletrônicos, ela poderia, sem dúvida, ser aproveitada, à luz do
princípio da proporcionalidade — e segundo a doutrina da ponderação de
interesses — pois, assim como o direito ao sigilo das comunicações é
preservado pelo manto da Constituição, a integridade moral do cônjuge
traído também o é, observadas, claro, as circunstâncias do caso
concreto, segundo a prudência e o bom senso do julgador.
[55]
Em contrapartida, há quem entenda que mesmo com o e-mail e computador
de uso comum não seria possível se valer das mensagens trocadas como
prova, levando-se em conta que o direito à privacidade de um cônjuge não
pode ser mitigado em razão do direito à reparação do cônjuge traído.
Defendendo essa vertente, Maria Berenice afirma
Ninguém está autorizado a invadir
o correio eletrônico alheio, mesmo não bloqueado por meio de senha, e
ainda que o computador seja de uso comum. O direito à
inviolabilidade do sigilo da correspondência, assegurado constitucionalmente (CF 5.º XII), compreende a correspondência virtual. O acesso a e-mails alheios configura
invasão de privacidade,
que igualmente dispõe de resguardo como direito fundamental (CF 5.º X).
Ao depois, são inadmissíveis, em juízo, provas obtidas por meios
ilícitos (CF 5.º LVI). A comunicação via internet é um espaço de
absoluta privacidade, fazendo parte da auréola da intimidade individual
[...] Em face do conflito de interesses, há que se atentar sempre para o
critério da proporcionalidade. O direito do “traído” esbarra num
direito maior do seu consorte, que é tutelado em sede constitucional, de
não ter sua intimidade e sua vida privada expostas e reveladas, de
receber um tratamento digno e humano.
[56] (Grifo do autor)
No cenário atual, diante da irrelevância de demonstração de culpa no
divórcio, a posição mais adequada parece ser a da impossibilidade de
utilização das mensagens eletrônicas para fim de servir como prova no
processo judicial, haja vista que a quebra do dever de fidelidade,
restrito ao casal, somente enseja o rompimento do vínculo matrimonial,
se essa for a vontade das partes.
Assim decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, corroborando o
pensamento de que diante do direito à produção de prova do cônjuge
traído e do direito à privacidade do cônjuge infiel deve prevalecer este
último, fazendo uso da ponderação de interesses e direitos. Em trecho
do acórdão decidiram os ministros
Ainda que se considere que os direitos e deveres do casamento estejam
albergados pelo texto constitucional, entendo que deve prevalecer o
direito à intimidade e à vida privada dos demandados, de modo a tornar
ilícita a prova obtida mediante interceptação clandestina de diálogos
mantidos por serviço de mensagens instantâneas, nos termos do art. 5º,
X, da Constituição Federal.
[57]
Por esse motivo, não se justifica a invasão da privacidade a fim de
obter mensagens que comprovem o envolvimento extraconjugal se não há
utilidade de tal conduta. No momento em que o cônjuge traído recorre ao
judiciário ele visa causar sofrimento ao infiel como forma de ter a sua
dor amenizada, vingada. É o que expõe Maria Berenice Dias
Ainda que preveja a lei direitos e imponha deveres aos cônjuges, a
serem cumpridos durante a vigência da sociedade conjugal - e agora
dentro da própria união estável -, o adimplemento de tais deveres não é
buscado na Justiça. Somente quando o vínculo afetivo se desfaz é que
partícipes batem às portas dos tribunais. A busca, porém, não é o
reconhecimento da existência de direitos que foram violados nem o
cumprimento coacto dos deveres não adimplidos durante o período da vida
em comum. As denúncias e queixas não visam à recomposição da entidade
familiar. A postura é nitidamente vingativa, quem se sente lesado pelas
omissões do outro busca uma compensação.
[58]
Por conseguinte, aceitar a referida prova seria sacrificar um bem
jurídico tutelado constitucionalmente por uma satisfação pessoal do
cônjuge traído sem qualquer objetivo jurídico. Portanto, a prova obtida
violando o sigilo da correspondência e a privacidade é ilícita,
inadmitida no processo judicial brasileiro.
6 DANO MORAL
A infidelidade virtual passou a ser estudada no mundo jurídico a partir
da discussão nos tribunais a respeito do dano moral requerido pelo
cônjuge que descobria a traição através do mundo cibernético. Poucos
ainda são os casos levados ao Judiciário, mas como bem observa Beatriz
Mileham
apud Pablo Stolze: “A Internet será em breve a forma mais comum de infidelidade, se já não for”.
[59]
Como já salientado, a internet possibilitou o anonimato, os flertes e
casos amorosos de forma mais sigilosa e muitas vezes não realizada no
mundo real, despertando em maior grau o imaginário do indivíduo,
aguçando fantasias nunca despertadas. Contudo, o breu que a web
proporciona não é total, seja por descuido do próprio cônjuge infiel ou
até mesmo por desconfiança e curiosidade do traído, o relacionamento
extraconjugal acaba vindo à tona, gerando divórcios e em alguns casos,
pedido de indenização por dano moral.
Nesse ponto, diverge a doutrina sobre a possibilidade de
responsabilização civil no Direito de Família. Para uma vertente, a
responsabilidade no âmbito da família abrangeria tanto os casos de atos
ilícitos previstos no Código Civil, nos artigos 186 e 187, como também
os casos de descumprimento de algum dos deveres familiares. Apontam
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald
[...] sustentam estes que a indenização seria devida tanto os casos
gerais de ilicitude (tomando como modelo os arts. 186 e 187 da Lei
Civil), como em casos específicos, decorrentes da violação de deveres
familiares em concreto. Seria o exemplo da violação de um dos deveres
matrimoniais previsto no art. 1.566 do Codex, como a prática de
adultério ou a cessação de vida em comum. Nestes casos, entende esta
primeira corrente, haveria um dever de indenizar decorrente da violação
de dever imposto pela norma legal [...]
[60]
Adepta a essa corrente, Regina Beatriz Tavares da Silva defende a
possibilidade de reparação civil em decorrência da prática de
infidelidade afirmando:
Assim, se há descumprimento do dever de fidelidade por parte de uma
pessoa casada ou que viva em união estável, do qual decorra dano, que na
maioria das vezes será de ordem moral, pelo sofrimento que a traição
causa, haverá o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil
e, por conseguinte, o direito à indenização do consorte ofendido,
traído na relação conjugal ou de união estável, que tem caráter
monogâmico em nosso sistema social e jurídico.
[61]
Em outra ponta, defende-se que somente caberia falar em
responsabilização no Direito de Família quando o ato ilícito praticado
estivesse previsto dentre as causas gerais de ilicitude presentes no
Código Civil, não ensejando reparação indenizatória a prática de ato
diverso, inclusive os referentes ao dever familiar.
Levando em conta o aspecto singular inerente ao Direito de Família, o
qual tem o afeto como pilar, tem-se a segunda vertente como posição mais
adequada. E isso não quer dizer que se estaria acobertando ilicitudes
por ausência de previsão normativa. Os atos ilícitos, como a traição
vexatória e a agressão, por exemplo, continuam passíveis de reparação
civil. No entanto, desamor e falta de afeto são valores
não-patrimoniais, que não se pode comprar, vender ou mesmo obrigar
alguém a ter/dar.
Esclarecem Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald
[...] não se pode admitir que a pura e simples violação de afeto enseje
uma indenização por dano moral. Somente quando uma determinada conduta
caracterizar-se como ilícita é que será possível indenizar os danos
morais e materiais dela decorrentes.
Afeto, carinho, amor, atenção... são valores espirituais, dedicados a
outrem por absoluta e exclusiva vontade pessoal, não por imposição
jurídica. Reconhecer a indenizabilidade decorrente da negativa de afeto
produziria uma verdadeira patrimonialização de algo que não possui tal
característica econômica. Seria subverter a evolução natural da ciência
jurídica, retrocedendo a um período em que o
ter valia mais do que o
ser.
[62](Grifo do autor)
Portanto, verifica-se que não é todo caso de traição pela internet
capaz de gerar uma indenização pecuniária. A doutrina e a jurisprudência
brasileiras se inclinam na direção de que somente a infidelidade
virtual que exponha o cônjuge traído, que o coloque numa situação
vexatória, que extrapole a intimidade do casal seria passível de
indenização por dano moral.
Nesse diapasão, acrescenta Alexandre Rosa
[...] não é toda e qualquer separação que pode ensejar a indenização
por dano moral. Não sou daqueles que rejeita de forma absoluta a
indenização por dano moral, nem o que aplica na sua maior amplitude.
Penso que existem situações em que a violação dos deveres do casamento
se mostra pública, transbordando os limites da dor pessoal e interna, de
forma grave. Rompe a intimidade do casal, da família, protraindo seus
efeitos para o ambiente social, causando constrangimento público[...]
[63]
O Superior Tribunal de Justiça, examinando o tema de indenização por
danos morais decorrentes da quebra do dever de fidelidade, já decidiu
que a falta de amor e a frustração de não ser feliz no casamento, por si
só, não gera o dever de reparação civil. Somente a infidelidade que
extrapole o sofrimento íntimo do traído, que o exponha no seu meio
social é que é passível de indenização por dano moral. Veja-se trecho do
acórdão:
Configurado, portanto, o dano moral, que
exorbitou a emoção interna
sofrida pelo ofendido em virtude dos reflexos da conduta leviana da
ex-mulher na vida social e familiar do ofendido, atingido de forma
ampla, porquanto identificado como pai pela sociedade, tendo que
conviver com a vergonha e o peso da verdade, já que, infere-se dos
autos, a mulher o traiu com um de seus amigos [...] Isso porque
não é a relação extraconjugal em si mesma o fato gerador da indenização, porquanto despicienda a comprovação da culpa de qualquer dos cônjuges pelo fim do vínculo afetivo,
mas, sim, as consequências indubitavelmente prejudiciais à vida pessoal e social do recorrente [...] (Grifo nosso)
[64]
Entender de forma diversa seria monetarizar o afeto, aplicando a sanção
pecuniária ao cônjuge infiel – que seja por falta de amor ou outro
motivo –, mantivesse uma relação extraconjugal, como forma de vingança
costumeira no fim de um relacionamento amoroso. E o papel do Direito não
é patrocinar a mágoa e a raiva de um cônjuge contra o outro, nem do
Estado de conferir legitimidade a essa prática.
Ademais, a aceitação do dano moral pela infringência de tal dever
acarretaria um descompasso às ações indenizatórias, gerando precedentes
para os exageros decorrentes da dor amorosa. Conforme elucida Sérgio
Gischkow Pereira apud Adriana Mendes dos Santos
Qualquer namoro terminará por originar dano moral. Em pouco tempo, os
namorados não poderão mais olhar para pessoas de outro sexo, pois aí
estará implementado requisito para pleitear dano moral por parte daquele
que, alegadamente, muito sofreu com o comportamento do acompanhante, na
medida em que teria havido desrespeito pela possibilidade de que o
olhar significasse desejo pelo outro. Mais um passo e o namorado não
poderá olhar para ninguém, ainda que do mesmo sexo, pois perpassará a
suspeita de desrespeitoso interesse homossexual.
[65]
Com isso não se quer dizer que não haja violação do dever de
fidelidade, nem tampouco que o cônjuge traído não sofra um desgaste
emocional e psicológico que o abale profundamente, causando-lhe dor,
angústia e tristeza diante de tal acontecimento. Porém, a indenização
por dano moral não deve ser o caminho para a sua reparação, pois não há
como efetivamente julgar quem seria o verdadeiro culpado pela traição,
se o infiel ou o cônjuge que permitiu “janelas” abertas em seu
relacionamento. Tampouco competiria ao magistrado analisar as razões
psicológicas e emocionais de cada casal, dado o seu caráter extremamente
íntimo, para não dizer impenetrável.
Em suma, seria dar carta branca ao Estado para se imiscuir na vida
conjugal, que a ninguém mais pertence se não ao próprio casal. Nesse
sentido entende Alexandre Rosa
A indenização seria considerada, caso acolhida sem maiores reflexões,
como mais uma sanção ao cônjuge responsável pela separação, cabendo
retomar a discussão: será que existe somente um culpado? Pode-se até
entender o rancor e a necessidade de machucar o ex-cônjuge, todavia,
contar com o apoio estatal nesta modalidade de vingança pessoal, ao meu
sentir, não encontra respaldo jurídico salvo a possibilidade de dano
grave, consoante antes ressaltado.
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De outra maneira, caso seja demonstrada a exposição pública do cônjuge,
revelando sua intimidade para terceiros, que gere humilhação, dor,
angústia em razão da infidelidade do seu parceiro capaz de ensejar dano
moral, possibilita o juiz no caso concreto a aplicar a indenização; já
se a infidelidade for restrita ao casal, não há que se falar em
indenização por dano moral. A publicização ocorre quando o cônjuge
infiel publica fotos em sua rede social, quando o relacionamento
extrapola o mundo virtual e os amantes passam a fazer aparições em
público, quando o infiel faz comentários sobre a vida íntima/sexual do
cônjuge, ou seja, um meio que o exponha para a sociedade.
Há que se destacar que o fundamento para o dano moral em consequência
da infidelidade virtual não está na quebra do dever matrimonial e sim na
exposição que atinja a honra objetiva do cônjuge traído, e não na honra
subjetiva, a qual pertence tão somente ao indivíduo, tendo em vista que
desacertos amorosos são, invariavelmente, consequência dos
relacionamentos.
7 CONCLUSÃO
A internet, como uma das maiores invenções das últimas décadas, surgiu e
influenciou diversos setores da vida cotidiana, dentre eles os
relacionamentos. Com a facilidade que lhe é peculiar, aproximou pessoas,
permitiu contatos com alguém distante a quilômetros, enfim,
possibilitou que laços fossem formados a partir da web.
Motivados pelo psdeudoanonimato, os indivíduos enxergaram nessa
ferramenta a possibilidade de se expressarem esquecendo a timidez e de
poderem assumir o papel que quisessem, ser quem desejassem. Ademais,
pela internet, poderiam dar lugar a suas fantasias esquecidas por medo
da repressão social.
Acontece que, na democracia da web, essas facilidades também foram
disponibilizadas aos casados, dando margem então ao nascimento de uma
relação com pessoa que não o seu cônjuge, de forma totalmente virtual. É
sabido que a rotina abala os relacionamentos – sobretudo o casamento –,
e a necessidade de inovar pulsa constantemente no sangue do indivíduo.
Assim, coberto pelo desejo de fugir da rotina e encontrar satisfação, o
consorte escolhe a internet como o melhor meio de lhe proporcionar, já
que acredita estar “invisível” nesse meio. Com isso, conflitos foram
surgindo, criando uma nova figura da infidelidade, a infidelidade
virtual, que passou a ser estudada pelos operadores do Direito.
O Código Civil regula o casamento, estabelecendo direitos e deveres
para os cônjuges. Em seu artigo 1.566, I, elenca como dever matrimonial
o da fidelidade recíproca e para os companheiros, no artigo 1.724, o
dever de lealdade. No entanto, não se pode entender o dever de
fidelidade de forma dissociada dos demais deveres, pois a fidelidade,
antes de qualquer coisa, insere-se num contexto maior de respeito para
com seu parceiro.
Sendo assim, o cônjuge que inicia conversas através da internet,
mantendo relacionamento virtual com terceiro estranho ao casamento,
viola o dever de fidelidade, sendo infiel de forma virtual. Embora não
exista mais a necessidade de demonstração de um culpado para o
rompimento do vínculo matrimonial, a infidelidade continua a ser dever
dos cônjuges e valor moral da sociedade brasileira.
Por isso, começaram a surgir no judiciário casos de cônjuges traídos
pela internet pleiteando indenização por dano moral. Atrelada à
discussão da possibilidade do enquadramento em dano moral, a questão da
admissibilidade das provas também surgiu.
À luz da ponderação de direitos e interesses, verifica-se a
inadmissibilidade da prova de infidelidade virtual, tendo em vista que,
na maioria dos casos, é alcançada à custa da violação da privacidade do
cônjuge para satisfazer o direito de produção de prova do que fora
traído que, ao final, não terá utilidade.
No que tange ao dano moral, só há que se falar em indenização se
ocorrer a exposição de forma pública dessa infidelidade, sujeitando o
consorte traído a situações vexatórias decorrentes da infração ao dever
de fidelidade recíproca. Justifica-se tal entendimento pelo fato de que
não há como sancionar os desencontros amorosos de uma relação tão íntima
como a de casamento, imiscuindo-se na vida conjugal para alcançar a
verdade sobre o real culpado pela traição; verdade essa que nunca se
terá.
Portanto, conclui-se que a infidelidade virtual é, de forma inconteste,
uma espécie de infidelidade pertencente ao mundo contemporâneo.
Contudo, objetivar punir o cônjuge infiel com indenizações pecuniárias
pelo ciber relacionamento é permitir, com a chancela do
Judiciário, a vingança pela mágoa causada ao cônjuge traído. Ademais, é
adentrar no cinzento espaço da monetarização do afeto, indo de encontro a
todo avanço alcançado nas relações pessoais.
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