Amigos, todos que vivem o Direito de Família diariamente tem sido bombardeados por uma discussão incômoda e pouco transparente sobre a legitimidade, perante a sociedade brasileira, do Projeto de Lei que passou a ser conhecido como Estatuto das Famílias (atual PL 470/2013), de autoria científica do IBDFAM.
Trata o referido Projeto, como se sabe, de proposta para retirar o Direito de Família do Código Civil e tratá-lo em Estatuto próprio, com seus princípios, sua metodologia e seus avanços jurisprudenciais. Entretanto, existem algumas opiniões discordantes acerca da validade dessas intenções.
Para ampliar o debate e favorecer o senso crítico sobre o moderno Direito de Família no Brasil, como sempre foi feito nesse BLOG, e para privilegiar o debate acadêmico de ideias, apresentamos abaixo dois recentes artigos sobre a matéria, um da Professora Regina Beatriz Tavares, publicado no Estado de São Paulo, e outro de Mário Luiz Delgado, publicado no site do BDFAM.
Estamos convictos de que as incertezas sobre essa e outras propostas são fruto do pouco diálogo entre os lados dissonantes. Seguem, então, dois textos para ajudar nosso leitor a tomar parte nessa discussão.
Boa leitura a todos!
..................................................
Destruição da família projetada em lei
Regina Beatriz Tavares da Silva* - O Estado de S.Paulo
O Estatuto das Famílias, que tramita na Câmara dos
Deputados (PL 2.285/2007, apensado ao PL 674/2007) e foi reapresentado
no Senado em 12/11 (PL 470/2013), com o mesmo conteúdo, embora com
roupagem diferente, parte de premissas individualistas, aparentemente
baseadas no afeto, mas que pretendem impor em nossa legislação, por meio
de engodo linguístico, a devassidão. Essa legislação projeta que as
denominadas relações paralelas - expressão enganosa, porque suaviza seu
conteúdo de mancebia - sejam alçadas ao patamar de entidades familiares.
Assim, consta do título das Entidades Familiares, artigo 14, caput,
que "as pessoas integrantes da entidade familiar têm o dever recíproco
de assistência, amparo material e moral, sendo obrigadas a concorrer, na
proporção de suas condições financeiras e econômicas, para a manutenção
da família". E no parágrafo único do mesmo artigo, que "a pessoa
casada, ou que viva em união estável, e que constitua relacionamento
familiar paralelo com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres
referidos neste artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais".
Os amantes terão direito a pensão alimentícia e poderão, ainda,
requerer reparação dos danos morais e materiais por falta das mesmas
atenções e benesses dadas às famílias oriundas de casamento ou união
estável. Isso é poligamia.
O Estatuto chega ao cúmulo, nas suas justificativas, de argumentar
que "a realidade social subjacente obriga a todos, principalmente a quem
se dedica ao seu estudo, a pensar e repensar o ordenamento jurídico
para que se aproxime dos anseios mais importantes das pessoas". Desde
quando é anseio social no Brasil que as relações conjugais ou de união
estável admitam relações paralelas ou mancebia? Vê-se que o projeto
distorce o pensamento social e quer institucionalizar a poligamia.
Além da poligamia velada, o projeto pretende institucionalizar a
poligamia consentida. Ora, quem recebe um trio formado por duas mulheres
e um homem ou por dois homens e uma mulher em sua casa e lhe diz:
"Venha, sente-se e coma à minha mesa"? Ditado que bem representa e
resume que relações paralelas não são aceitas pela sociedade e devem ser
repudiadas pela legislação e por todas as formas de expressão do
Direito.
Ao proteger a família, a Constituição estabelece no artigo 226, §
3.º, que as entidades familiares são monogâmicas quando oriundas da
união estável, que só comporta duas pessoas, e não três ou mais.
Portanto, o projeto é inconstitucional.
No artigo 69, § 2.º, do tal projeto, a "família pluriparental é a
constituída pela convivência entre irmãos, bem como as comunhões
afetivas estáveis existentes entre parentes colaterais". Estaria aí a
busca de atribuição de legalidade às relações incestuosas? Recorde-se
que nesse projeto de lei tudo pode e cabe numa entidade familiar, em
afeto e sexualidade.
Nas famílias chamadas recompostas, o padrasto e a madrasta têm
direitos e deveres para com os enteados, compartilhando a autoridade dos
pais, conforme o artigo 70. O padrasto ou a madrasta, além de poder
exigir a convivência com o enteado, passará a ter o dever de pagar-lhe
pensão alimentícia, em complementação ao sustento que já lhe dê o pai ou
a mãe, como prevê o artigo 74, o que é retomado no artigo 90, § 3.º: "O
cônjuge ou companheiro de um dos pais pode compartilhar a autoridade
parental em relação aos enteados, sem prejuízo do exercício da
autoridade parental do outro". Isso é multiparentalidade.
Com a tal multiparentalidade haverá incentivo ao ócio, porque, se um
jovem tiver duas fontes pagadoras de alimentos (pai e padrasto ou mãe e
madrasta), por que se esforçaria para trabalhar? É um incentivo ao ócio
também porque o genitor de uma criança ou adolescente, se pudesse exigir
pensão alimentícia do ex-cônjuge ou ex-companheiro, pela natureza
humana, que cultiva, ainda que no íntimo de seu ser, a preguiça, ficaria
sem vontade de buscar recursos para auxiliar no sustento do filho.
Igualmente é incentivo ao desafeto, porque, em sã consciência, será
evitada a união com quem tenha filhos, em face da futura obrigação de
pagamento de pensão alimentícia diante da separação do genitor ou
genitora dos menores. Propaga-se o afeto e incentiva-se o desafeto.
Trata-se de óbvia contradição.
Sobre a presunção da paternidade, o projeto propõe que ocorra não só
no casamento e na união estável, mas também em qualquer convivência
entre a mãe e o suposto pai (artigo 82, I). A relação eventual, sem
estabilidade e sem certeza na paternidade, o que é natural em nossos
"alegres" dias, acarretará tal presunção, de modo que o homem, antes do
exame de DNA, será havido como pai do infante. Para que esse vínculo de
falsa paternidade se desfaça caberá a ele promover ação de contestação
da paternidade. Enquanto o processo judicial tiver andamento - moroso ou
até suspenso por poder absoluto do juiz, previsto no artigo 149 -, esse
homem, se não for o pai, prestará pensão alimentícia ao rebento. E
também na família chamada paralela o amante será presumidamente havido
como pai do filho da amásia. É um despautério.
Não bastasse isso, pais e mães sofreriam diminuição do poder familiar
perante os filhos, não só por terem de dividi-lo com o padrasto ou a
madrasta, mas também porque, segundo o artigo 104 dessa legislação
projetada, "o direito à convivência pode ser estendido a qualquer pessoa
com quem a criança ou o adolescente mantenha vínculo de afetividade".
Isso é quebra da base da educação e formação das crianças e dos
adolescentes.
Assim como o projeto que está "adormecido" na Câmara, essas
proposições legislativas de iniciativa do Senado - que têm algumas
diferenças redacionais, mas os mesmos objetivos - deveriam ser
denominadas "projeto de lei de destruição da família". Pois esse chamado
Estatuto das Famílias, que hasteia uma simulada bandeira de afeto, visa
à deturpação familiar e ao consequente enfraquecimento da sociedade,
que viverá em completa imoralidade. Isso é devassidão na legislação
projetada!
*Regina Beatriz Tavares da Silva é advogada, doutora pela USP, consultora da OAB-SP e conselheira do IASP.
........................................................
Um novo Direito de Família que se projeta
Está reaberto o debate em torno do
projeto de lei que institui o chamado "Estatuto das Famílias",
reapresentado perante o Senado Federal pela Senadora Lídice da Mata,
agora aperfeiçoado e sob nova roupagem. Esse projeto (PLS
470/13), como se sabe, desmembra do
Código Civil o título que trata do Direito de Família e reestrutura toda a matéria, criando um estatuto autônomo.
Consentâneo com as realidades da vida,
para as quais o Direito não pode fechar os olhos, o projeto busca
soluções para conflitos e demandas familiares, a partir de novos valores
jurídicos como o afeto, o cuidado, a solidariedade e a pluralidade.
Optando pela celeridade, simplicidade, informalidade, fungibilidade e
economia processual, a fim de proporcionar a efetiva concretização dos
princípios constitucionais, abre as portas do sistema jurídico-positivo
para as novas demandas surgidas nas relações de família, como é caso da
paternidade socioafetiva, do abandono afetivo, da alienação parental e
das famílias recompostas, simultâneas ou não.
Quando da apresentação da primeira versão
projeto, em 2007, manifestei, em carta aberta divulgada em diversas
publicações, posteriormente transformada em artigo e em capítulo de
livro1, posição contrária à iniciativa. A contrariedade, no
entanto, era restrita ao aspecto formal. Explico: talvez imbuído da
paixão pelo Código Civil de 2002, decorrente da minha atuação direta no
processo legislativo junto à ultima relatoria do projeto, tinha
dificuldade em aceitar qualquer alteração relevante do Código,
especialmente essa, que iria suprimir do regramento codificado toda uma
disciplina jurídica. Defendia ser mais conveniente e oportuno reformar o
próprio Código Civil no lugar de começar do zero, tentando criar um
código novo, e que todas as inovações do Estatuto poderiam, com muito
mais facilidade, ser inseridas no Código Civil.
Portanto, em momento algum, me opus à
necessidade de modernização do Direito de Família tal como proposto, no
mérito, pelo PL 470/13. Aliás, modernização que é imperativa, face às
grandes transformações legislativas ocorridas na última década, tais
como as leis
11.698 (guarda compartilhada),
11.804 (alimentos gravídicos),
11.924(acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta),
12.010 (adoção) e a EC
66/10.
Passados os anos, e com o peso da
experiência que transforma certezas em dúvidas, hesito, agora, sobre a
correção da minha posição anterior. Como defendo em meu livro "Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro",
a evolução do Direito é sempre marcada por movimentos cíclicos e
alternados de concentração e de fragmentação ou dispersão das fontes. O
desenvolvimento da sociedade, a causar o envelhecimento natural dos
códigos, gera, em contrapartida, a necessidade de se regulamentar a lattere do código toda uma gama de novas questões. Esse processo de dispersão das fontes sempre se sucede ao processo de codificação.
O Direito de Família realmente possui
institutos que o diferenciam, de forma muito peculiar, dos demais ramos,
especialmente pela sua aderência direta e imediata às realidades da
vida, que de tão diversificadas e mutáveis implicam a impossibilidade de
o Código Civil albergar todas as demandas da família contemporânea. Sob
esse aspecto, uma legislação unificada em forma de estatuto autônomo
talvez venha a proporcionar uma hermenêutica mais harmônica dos
princípios constitucionais e facilitar a sua concretização, tal como
sustentado pelos elaboradores do projeto. Nos domínios da técnica
legislativa, os estatutos são textos legais bastante semelhantes aos
códigos, procurando disciplinar de modo completo e estanque uma
determinada ordem de relações jurídicas. Implicam sempre na criação de
direito novo, não tratando de condensar normas pré-existentes.
De qualquer forma, independentemente do
aspecto formal da iniciativa legislativa, o fato é que o projeto,
quanto ao seu conteúdo, representa notável avanço legislativo, à medida
que incorpora no regramento positivado posições que atualmente só são
acolhidas na jurisprudência, porém com considerável deficit na
segurança jurídica. Isso porque a uniformização dessas questões só é
obtida depois de muitos anos, quando decididas pelo Superior Tribunal de
Justiça.
Algumas dessas inovações, entretanto,
estão sendo mal compreendidas. Veja-se o caso, por exemplo, do
reconhecimento de certos direitos às chamadas entidades familiares
paralelas. Os críticos ao projeto sustentam a impossibilidade jurídica
dos arranjos familiares simultâneos, a exemplo de uniões estáveis
paralelas, ou nomeadamente a concomitância de união estável e casamento,
produzirem quaisquer efeitos jurígenos. Apegados ao dogma da família
patriarcal, monogâmica e matrimonial, tais críticos esquecem as
situações extraídas da realidade social e que vem sendo reconhecidas
pela jurisprudência, tanto do Superior Tribunal de Justiça, como de
diversos tribunais estaduais, cada vez mais pujante no amparo das
multifárias manifestações familiares, mesmo porque não cabe ao Estado
exercer qualquer tipo de controle sobre o comportamento das pessoas na
seara afetiva.
Cite-se, aqui, o julgamento do REsp 1.126.173/MG, de 9 abril de 2013, onde o STJ, para fins de aplicação da lei
8.009/90,
decidiu que o devedor, possuindo entidades familiares simultâneas e
concomitantes, tem estendida a impenhorabilidade do bem de família a
ambos os imóveis utilizados como residência pelas famílias paralelas .
No julgamento da Apelação Cível
70022775605, a 8ª câmara Cível do TJ/RS reconheceu efeitos jurídicos
também à união estável concomitante ao casamento não desfeito, com
partilha de bens entre cônjuges e companheira.
No mesmo sentido, em demanda envolvendo
uniões estáveis paralelas, colhe-se a seguinte manifestação em
voto-vencedor do desembargador José Fernandes de Lemos, da 5ª câmara
Cível do TJ/PE, na Apelação Cível 296.862-5:
"No caso em análise, há que se
atentar para o fato evidente de que, se o varão esteve no vértice de uma
relação angular com duas mulheres, duas casas e duas proles,
preenchendo em ambos os núcleos o papel de marido, de provedor e de pai,
é que cultivava a compreensão pessoal de que podia integrar duas
famílias, e, no seu íntimo, nutria a aberta intenção de fazê-lo.
(...)
Tais circunstâncias, se analisadas
com a devida isenção de ânimo, demonstram o caráter familiar da união
amorosa mantida pela autora-apelante, que em nada se assemelha às
relações clandestinas e furtivas, de finalidade meramente libidinosa.
Assim, configurando-se a formação de autênticos núcleos familiares
simultâneos, não há razão jurídica para que se exclua um deles da tutela
estatal, desmerecendo-o e relegando-o à plena desconsideração, ou,
quando muito, à tutela do direito obrigacional."
E antes que se deturpe o sentido desta
minha manifestação, para transformá-la em uma espécie de ode à
poligamia, ressalto o meu pleno convencimento da permanência do
princípio monogâmico como um dos princípios basilares do nosso Direito
de Família legislado, ao lado da afetividade, da busca da felicidade, da
isonomia de gênero e do melhor interesse da criança e do adolescente.
Ocorre que todo e qualquer princípio está sujeito à colisão com outros
princípios e até mesmo com outras regras, submetendo-se, portanto, a
contínua e permanente operação de ponderação. A convivência dos
princípios é sempre tensa, conflitual e, por isso, não pode o princípio
da monogamia impedir o reconhecimento de determinados direitos,
especialmente quando estiver em jogo o macro princípio da dignidade da
pessoa humana. Os princípios colidentes coexistem, deixando de ser
aplicados em um caso ou em outro, de acordo com o seu peso ou sua
importância naquela situação concreta, mas permanecendo no ordenamento.
Da mesma forma que se reconhecem
direitos ao casamento putativo, a despeito de sua nulidade absoluta, em
prol do princípio da boa fé, é de se reconhecer também juridicidade às
uniões paralelas quando, através de uma operação de ponderação e
sopesamento, se puder afastar o princípio monogâmico no caso concreto.
O que se verifica, como tendência
jurisprudencial, portanto, é a proteção da família em seu sentido mais
amplo, abrangendo, inclusive, a multiplicidade da entidade familiar, em
hipóteses excepcionais.
Enfim, se o projeto 470/13 puder ser
aperfeiçoado, o momento é este. E nesse sentido, o IASP, através de sua
Comissão de Estudos de Direito de Família e das Sucessões, estará,
oportunamente, se debruçando sobre o texto.
Concorde-se ou não com a iniciativa da
Senadora Lídice da Mata e do IBDFAM, não se pode lhe retirar o mérito de
trazer luzes a um debate tão instigante quanto apaixonante, como sói
acontecer com todas as questões de família.
Por Mário Luiz Delgado
[1]
_________
1 DELGADO, Mário Luiz.
Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 466-469.
[1]
Mário Luiz Delgado é Diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos
Advogados de São Paulo – IASP. Presidente da Comissão de Legislação do
IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família.
Nenhum comentário:
Postar um comentário