fevereiro 17, 2014

Especialistas se dividem sobre a legitimidade do Estatuto das Famílias na sociedade brasileira



Amigos, todos que vivem o Direito de Família diariamente tem sido bombardeados por uma discussão incômoda e pouco transparente sobre a legitimidade, perante a sociedade brasileira, do Projeto de Lei que passou a ser conhecido como Estatuto das Famílias (atual PL 470/2013), de autoria científica do IBDFAM.

Trata o referido Projeto, como se sabe, de proposta para retirar o Direito de Família do Código Civil e tratá-lo em Estatuto próprio, com seus princípios, sua metodologia e seus avanços jurisprudenciais. Entretanto, existem algumas opiniões discordantes acerca da validade dessas intenções. 

Para ampliar o debate e favorecer o senso crítico sobre o moderno Direito de Família no Brasil, como sempre foi feito nesse BLOG, e para privilegiar o debate acadêmico de ideias, apresentamos abaixo dois recentes artigos sobre a matéria, um da Professora Regina Beatriz Tavares, publicado no Estado de São Paulo, e outro de Mário Luiz Delgado, publicado no site do BDFAM.

Estamos convictos de que as incertezas sobre essa e outras propostas são fruto do pouco diálogo entre os lados dissonantes. Seguem, então, dois textos para ajudar nosso leitor a tomar parte nessa discussão.

Boa leitura a todos!

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Destruição da família projetada em lei 

Regina Beatriz Tavares da Silva* - O Estado de S.Paulo
O Estatuto das Famílias, que tramita na Câmara dos Deputados (PL 2.285/2007, apensado ao PL 674/2007) e foi reapresentado no Senado em 12/11 (PL 470/2013), com o mesmo conteúdo, embora com roupagem diferente, parte de premissas individualistas, aparentemente baseadas no afeto, mas que pretendem impor em nossa legislação, por meio de engodo linguístico, a devassidão. Essa legislação projeta que as denominadas relações paralelas - expressão enganosa, porque suaviza seu conteúdo de mancebia - sejam alçadas ao patamar de entidades familiares.
Assim, consta do título das Entidades Familiares, artigo 14, caput, que "as pessoas integrantes da entidade familiar têm o dever recíproco de assistência, amparo material e moral, sendo obrigadas a concorrer, na proporção de suas condições financeiras e econômicas, para a manutenção da família". E no parágrafo único do mesmo artigo, que "a pessoa casada, ou que viva em união estável, e que constitua relacionamento familiar paralelo com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais". Os amantes terão direito a pensão alimentícia e poderão, ainda, requerer reparação dos danos morais e materiais por falta das mesmas atenções e benesses dadas às famílias oriundas de casamento ou união estável. Isso é poligamia.
O Estatuto chega ao cúmulo, nas suas justificativas, de argumentar que "a realidade social subjacente obriga a todos, principalmente a quem se dedica ao seu estudo, a pensar e repensar o ordenamento jurídico para que se aproxime dos anseios mais importantes das pessoas". Desde quando é anseio social no Brasil que as relações conjugais ou de união estável admitam relações paralelas ou mancebia? Vê-se que o projeto distorce o pensamento social e quer institucionalizar a poligamia.
Além da poligamia velada, o projeto pretende institucionalizar a poligamia consentida. Ora, quem recebe um trio formado por duas mulheres e um homem ou por dois homens e uma mulher em sua casa e lhe diz: "Venha, sente-se e coma à minha mesa"? Ditado que bem representa e resume que relações paralelas não são aceitas pela sociedade e devem ser repudiadas pela legislação e por todas as formas de expressão do Direito.
Ao proteger a família, a Constituição estabelece no artigo 226, § 3.º, que as entidades familiares são monogâmicas quando oriundas da união estável, que só comporta duas pessoas, e não três ou mais. Portanto, o projeto é inconstitucional.
No artigo 69, § 2.º, do tal projeto, a "família pluriparental é a constituída pela convivência entre irmãos, bem como as comunhões afetivas estáveis existentes entre parentes colaterais". Estaria aí a busca de atribuição de legalidade às relações incestuosas? Recorde-se que nesse projeto de lei tudo pode e cabe numa entidade familiar, em afeto e sexualidade.
Nas famílias chamadas recompostas, o padrasto e a madrasta têm direitos e deveres para com os enteados, compartilhando a autoridade dos pais, conforme o artigo 70. O padrasto ou a madrasta, além de poder exigir a convivência com o enteado, passará a ter o dever de pagar-lhe pensão alimentícia, em complementação ao sustento que já lhe dê o pai ou a mãe, como prevê o artigo 74, o que é retomado no artigo 90, § 3.º: "O cônjuge ou companheiro de um dos pais pode compartilhar a autoridade parental em relação aos enteados, sem prejuízo do exercício da autoridade parental do outro". Isso é multiparentalidade.
Com a tal multiparentalidade haverá incentivo ao ócio, porque, se um jovem tiver duas fontes pagadoras de alimentos (pai e padrasto ou mãe e madrasta), por que se esforçaria para trabalhar? É um incentivo ao ócio também porque o genitor de uma criança ou adolescente, se pudesse exigir pensão alimentícia do ex-cônjuge ou ex-companheiro, pela natureza humana, que cultiva, ainda que no íntimo de seu ser, a preguiça, ficaria sem vontade de buscar recursos para auxiliar no sustento do filho. Igualmente é incentivo ao desafeto, porque, em sã consciência, será evitada a união com quem tenha filhos, em face da futura obrigação de pagamento de pensão alimentícia diante da separação do genitor ou genitora dos menores. Propaga-se o afeto e incentiva-se o desafeto. Trata-se de óbvia contradição.
Sobre a presunção da paternidade, o projeto propõe que ocorra não só no casamento e na união estável, mas também em qualquer convivência entre a mãe e o suposto pai (artigo 82, I). A relação eventual, sem estabilidade e sem certeza na paternidade, o que é natural em nossos "alegres" dias, acarretará tal presunção, de modo que o homem, antes do exame de DNA, será havido como pai do infante. Para que esse vínculo de falsa paternidade se desfaça caberá a ele promover ação de contestação da paternidade. Enquanto o processo judicial tiver andamento - moroso ou até suspenso por poder absoluto do juiz, previsto no artigo 149 -, esse homem, se não for o pai, prestará pensão alimentícia ao rebento. E também na família chamada paralela o amante será presumidamente havido como pai do filho da amásia. É um despautério.
Não bastasse isso, pais e mães sofreriam diminuição do poder familiar perante os filhos, não só por terem de dividi-lo com o padrasto ou a madrasta, mas também porque, segundo o artigo 104 dessa legislação projetada, "o direito à convivência pode ser estendido a qualquer pessoa com quem a criança ou o adolescente mantenha vínculo de afetividade". Isso é quebra da base da educação e formação das crianças e dos adolescentes.
Assim como o projeto que está "adormecido" na Câmara, essas proposições legislativas de iniciativa do Senado - que têm algumas diferenças redacionais, mas os mesmos objetivos - deveriam ser denominadas "projeto de lei de destruição da família". Pois esse chamado Estatuto das Famílias, que hasteia uma simulada bandeira de afeto, visa à deturpação familiar e ao consequente enfraquecimento da sociedade, que viverá em completa imoralidade. Isso é devassidão na legislação projetada!
*Regina Beatriz Tavares da Silva é advogada, doutora pela USP, consultora da OAB-SP e conselheira do IASP.
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Um novo Direito de Família que se projeta

Mário Luiz Delgado


Está reaberto o debate em torno do projeto de lei que institui o chamado "Estatuto das Famílias", reapresentado perante o Senado Federal pela Senadora Lídice da Mata, agora aperfeiçoado e sob nova roupagem. Esse projeto (PLS 470/13), como se sabe, desmembra do Código Civil o título que trata do Direito de Família e reestrutura toda a matéria, criando um estatuto autônomo.
 
Consentâneo com as realidades da vida, para as quais o Direito não pode fechar os olhos, o projeto busca soluções para conflitos e demandas familiares, a partir de novos valores jurídicos como o afeto, o cuidado, a solidariedade e a pluralidade. Optando pela celeridade, simplicidade, informalidade, fungibilidade e economia processual, a fim de proporcionar a efetiva concretização dos princípios constitucionais, abre as portas do sistema jurídico-positivo para as novas demandas surgidas nas relações de família, como é caso da paternidade socioafetiva, do abandono afetivo, da alienação parental e das famílias recompostas, simultâneas ou não.
Quando da apresentação da primeira versão projeto, em 2007, manifestei, em carta aberta divulgada em diversas publicações, posteriormente transformada em artigo e em capítulo de livro1, posição contrária à iniciativa. A contrariedade, no entanto, era restrita ao aspecto formal. Explico: talvez imbuído da paixão pelo Código Civil de 2002, decorrente da minha atuação direta no processo legislativo junto à ultima relatoria do projeto, tinha dificuldade em aceitar qualquer alteração relevante do Código, especialmente essa, que iria suprimir do regramento codificado toda uma disciplina jurídica. Defendia ser mais conveniente e oportuno reformar o próprio Código Civil no lugar de começar do zero, tentando criar um código novo, e que todas as inovações do Estatuto poderiam, com muito mais facilidade, ser inseridas no Código Civil.
 
Portanto, em momento algum, me opus à necessidade de modernização do Direito de Família tal como proposto, no mérito, pelo PL 470/13. Aliás, modernização que é imperativa, face às grandes transformações legislativas ocorridas na última década, tais como as leis 11.698 (guarda compartilhada), 11.804 (alimentos gravídicos), 11.924(acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta), 12.010 (adoção) e a EC 66/10.
 
Passados os anos, e com o peso da experiência que transforma certezas em dúvidas, hesito, agora, sobre a correção da minha posição anterior. Como defendo em meu livro "Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro", a evolução do Direito é sempre marcada por movimentos cíclicos e alternados de concentração e de fragmentação ou dispersão das fontes. O desenvolvimento da sociedade, a causar o envelhecimento natural dos códigos, gera, em contrapartida, a necessidade de se regulamentar a lattere do código toda uma gama de novas questões. Esse processo de dispersão das fontes sempre se sucede ao processo de codificação.
 
O Direito de Família realmente possui institutos que o diferenciam, de forma muito peculiar, dos demais ramos, especialmente pela sua aderência direta e imediata às realidades da vida, que de tão diversificadas e mutáveis implicam a impossibilidade de o Código Civil albergar todas as demandas da família contemporânea. Sob esse aspecto, uma legislação unificada em forma de estatuto autônomo talvez venha a proporcionar uma hermenêutica mais harmônica dos princípios constitucionais e facilitar a sua concretização, tal como sustentado pelos elaboradores do projeto. Nos domínios da técnica legislativa, os estatutos são textos legais bastante semelhantes aos códigos, procurando disciplinar de modo completo e estanque uma determinada ordem de relações jurídicas. Implicam sempre na criação de direito novo, não tratando de condensar normas pré-existentes.
 
De qualquer forma, independentemente do aspecto formal da iniciativa legislativa, o fato é que o projeto, quanto ao seu conteúdo, representa notável avanço legislativo, à medida que incorpora no regramento positivado posições que atualmente só são acolhidas na jurisprudência, porém com considerável deficit na segurança jurídica. Isso porque a uniformização dessas questões só é obtida depois de muitos anos, quando decididas pelo Superior Tribunal de Justiça.
 
Algumas dessas inovações, entretanto, estão sendo mal compreendidas. Veja-se o caso, por exemplo, do reconhecimento de certos direitos às chamadas entidades familiares paralelas. Os críticos ao projeto sustentam a impossibilidade jurídica dos arranjos familiares simultâneos, a exemplo de uniões estáveis paralelas, ou nomeadamente a concomitância de união estável e casamento, produzirem quaisquer efeitos jurígenos. Apegados ao dogma da família patriarcal, monogâmica e matrimonial, tais críticos esquecem as situações extraídas da realidade social e que vem sendo reconhecidas pela jurisprudência, tanto do Superior Tribunal de Justiça, como de diversos tribunais estaduais, cada vez mais pujante no amparo das multifárias manifestações familiares, mesmo porque não cabe ao Estado exercer qualquer tipo de controle sobre o comportamento das pessoas na seara afetiva.
 
Cite-se, aqui, o julgamento do REsp 1.126.173/MG, de 9 abril de 2013, onde o STJ, para fins de aplicação da lei 8.009/90, decidiu que o devedor, possuindo entidades familiares simultâneas e concomitantes, tem estendida a impenhorabilidade do bem de família a ambos os imóveis utilizados como residência pelas famílias paralelas .
 
No julgamento da Apelação Cível 70022775605, a 8ª câmara Cível do TJ/RS reconheceu efeitos jurídicos também à união estável concomitante ao casamento não desfeito, com partilha de bens entre cônjuges e companheira.
 
No mesmo sentido, em demanda envolvendo uniões estáveis paralelas, colhe-se a seguinte manifestação em voto-vencedor do desembargador José Fernandes de Lemos, da 5ª câmara Cível do TJ/PE, na Apelação Cível 296.862-5:
 
"No caso em análise, há que se atentar para o fato evidente de que, se o varão esteve no vértice de uma relação angular com duas mulheres, duas casas e duas proles, preenchendo em ambos os núcleos o papel de marido, de provedor e de pai, é que cultivava a compreensão pessoal de que podia integrar duas famílias, e, no seu íntimo, nutria a aberta intenção de fazê-lo.
(...)
Tais circunstâncias, se analisadas com a devida isenção de ânimo, demonstram o caráter familiar da união amorosa mantida pela autora-apelante, que em nada se assemelha às relações clandestinas e furtivas, de finalidade meramente libidinosa. Assim, configurando-se a formação de autênticos núcleos familiares simultâneos, não há razão jurídica para que se exclua um deles da tutela estatal, desmerecendo-o e relegando-o à plena desconsideração, ou, quando muito, à tutela do direito obrigacional."
 
E antes que se deturpe o sentido desta minha manifestação, para transformá-la em uma espécie de ode à poligamia, ressalto o meu pleno convencimento da permanência do princípio monogâmico como um dos princípios basilares do nosso Direito de Família legislado, ao lado da afetividade, da busca da felicidade, da isonomia de gênero e do melhor interesse da criança e do adolescente. Ocorre que todo e qualquer princípio está sujeito à colisão com outros princípios e até mesmo com outras regras, submetendo-se, portanto, a contínua e permanente operação de ponderação. A convivência dos princípios é sempre tensa, conflitual e, por isso, não pode o princípio da monogamia impedir o reconhecimento de determinados direitos, especialmente quando estiver em jogo o macro princípio da dignidade da pessoa humana. Os princípios colidentes coexistem, deixando de ser aplicados em um caso ou em outro, de acordo com o seu peso ou sua importância naquela situação concreta, mas permanecendo no ordenamento.
 
Da mesma forma que se reconhecem direitos ao casamento putativo, a despeito de sua nulidade absoluta, em prol do princípio da boa fé, é de se reconhecer também juridicidade às uniões paralelas quando, através de uma operação de ponderação e sopesamento, se puder afastar o princípio monogâmico no caso concreto.
 
O que se verifica, como tendência jurisprudencial, portanto, é a proteção da família em seu sentido mais amplo, abrangendo, inclusive, a multiplicidade da entidade familiar, em hipóteses excepcionais.
 
Enfim, se o projeto 470/13 puder ser aperfeiçoado, o momento é este. E nesse sentido, o IASP, através de sua Comissão de Estudos de Direito de Família e das Sucessões, estará, oportunamente, se debruçando sobre o texto.
 
Concorde-se ou não com a iniciativa da Senadora Lídice da Mata e do IBDFAM, não se pode lhe retirar o mérito de trazer luzes a um debate tão instigante quanto apaixonante, como sói acontecer com todas as questões de família.
 
Por Mário Luiz Delgado[1]
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DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 466-469.


[1] Mário Luiz Delgado é Diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Presidente da Comissão de Legislação do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família.

 


 

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