agosto 07, 2013
Artigo: Encomenda de Filho, por Jones Figueiredo Alves
A busca do filho, por
meios não naturais, encontra o caminho dos avanços da tecnologia,
mediante técnicas de reprodução assistida, que faz também encontrar
“novas famílias”. Tal sucede nos casos da mulher solteira, em produção
independente, que obtém esperma de doador desconhecido (famílias
monoparentais), e de casais homoafetivos, obtendo gametas em doação
(famílias de dois pais ou duas mães).
Decisão da Corte Européia de Direitos
Humanos, em 03.11.2011, admitiu legitima a proibição, por seus países
membros, de doação de sêmen e óvulos para a fertilização in vitro;
frustrando a expectativa de muitos casais inférteis. Não obstante
julgamento contrário (abril/2010) de uma de suas Câmaras. Em outra
latitude, reconheceu, porém, que cabe a cada Estado legislar sobre a
matéria, devolvendo aos países membros o poder-dever de revisões
legislativas que aperfeiçoem as leis sobre reprodução assistida.
No Brasil, onde inexiste estatuto legal
de reprodução medicamente assistida, a recente Resolução nº 2.013, de
16.04.2013, do Conselho Federal de Medicina, - publicada em Diário
Oficial da União, de 09.05.2013 - adota normas éticas para a utilização
das técnicas de RMA, como disposições deontológicas a serem seguidas
pela classe médica. Ali a doação de gametas é admitida, sempre sem
caráter lucrativo ou comercial, e sem identificação recíproca entre
doadores e receptores, ante a obrigatoriedade do sigilo pessoal da
identidade dos envolvidos (Cláusula IV, itens 1 e 2). A mesma Resolução
torna “permitido o uso das técnicas de RMA para relacionamentos
homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito da objeção de
consciência do médico.” (Cláusula II, ítem 2).
De saída, tem-se considerar, então, que
novos filhos serão obtidos de uma aplicação específica das imensas
possibilidades apresentadas pela medicina reprodutiva. É certo que
“esses recursos, positivamente considerados excepcionais, devam ser
acessíveis somente quando o emprego de tais técnicas seja o instrumento
inevitável ou que seja muito útil ao desenvolvimento da pessoa” (PIETRO
PERLINGIERI, 2000).
No ponto, a saber dos muitos arranjos
de experimentação reprodutiva, tenha-se presente a hipótese, então, da
encomenda de filho por casal homoafetivo, onde os dois pretendidos pais
elaboram projeto parental do filho, mediante a doação de óvulo e a
gestação de substituição, figurando o envolvimento, portanto, de
duas mulheres: a mãe de gestação (biológica) e a mãe genética (doadora
de óvulo). Aqui, não importa discutir a diretiva de presunção jurídica
de filiação.
Interessa observar que a lei não
oferece resposta jurídica adequada quanto a uma aplicação distorcida ou
desconforme de tais técnicas, com rupturas bioéticas a contemplar
situações atípicas ou inusitadas.
Pois bem. Convoca-se a essa hipótese, o
aparato novelesco dos personagens Niko, Eron e Amarilis; os primeiros
formando um casal homoafetivo e a última, figurando como amiga comum
daqueles (“Amor à Vida”). Na trama da novela, todos os elementos fáticos
contrariam as normas da reportada Resolução nº 2013/13 do Conselho
Federal de Medicina.
Bastante assinalar que (i) doadoras
temporárias do útero, à gestação de substituição, devem pertencer à
família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau
(VII, ítem 1); (ii) inadmissível uma inseminação artificialmista,
confusa ou combinada, cuja prática consiste no emprego de coquetel de
sêmen, combinação seminal de sêmen do marido e de terceiro(s) ou de dois
parceiros, havida por amoral por consenso de geneticistas e juristas.
Mas não é só:
(iii) Quando o personagem Amarilis resolve utilizar seu próprio óvulo, desconstitui-se,
em bom rigor, a gestação por outrem, porque ela mesma torna-se, nesse
caso, genitora genética e mãe geratriz, impondo-se a si mesma uma
maternidade plena (maternidade binária ou dual). Em menos palavras, ela
estaria gerando o seu filho para uma adoção. Isto porque não é permitido
que a mulher que sub-roga seu útero, use o seu óvulo à concepção
programada.
Em outra vertente, quando aquele mesmo
personagem (Amarilis) resolve envolver-se com um dos pretendidos pais
(Eron), admite-se a formação de um casal convencional, como pai e mãe do
filho pretendido (família biparental) em detrimento ao projeto
intentado pelo outro par (Eron/Niko). Tal situação foi tratada no filme
“Minhas Mães e Meu Pai” (“The Kids are all right”) (2010), onde um casal
de lésbicas tem dois filhos adolescentes, concebidos por inseminação
artificial, vindo um deles, Laser, procurar seu pai biológico (doador do
sêmen) e ao encontrá-lo, este termina por se envolver com uma das mães.
Em discussão, as figurações múltiplas e concomitantes de filiação
(biológica e socioafetiva).
Diante de tal cenário, em novela e na
vida, cumpre lembrar o famoso “Caso Baby M.”, onde a mãe portadora e
genética pretendeu anular o contrato “mediante o qual se obrigava a entregar a criança gerada ao pai biológico e a consentir na adoção pela mulher do pai biológico”.
A Suprema Corte de New Jersey, ao confirmar (1988) a decisão do
tribunal de primeira instância, ponderou pela prioridade dos interesses
da criança, que na hipótese, admitiu-os protegidos pela ligação afetiva
revelada ao pai e à sua mulher, não cuidando de avaliar os fundamentos
éticos e psicológicos da mãe genética para descumprir o contrato.
Segue-se pensar uma eventual disputa de
guarda, envolvendo os personagens da novela (Amarilis vs. Eron/Niko ou
Amarilis/Eron vs. Niko).
No primeiro caso, a recusa da suposta
mãe substitutiva, por pressuposto de unicamente hospedeira (sem doação
de seu material genético) à entrega da criança gestada, implica em
incumprimento do contrato, com lesão à boa-fé dos encomendantes do
projeto parental, pela reserva mental do uso do próprio óvulo.
Insere-se, na controvérsia, um contexto de fraude, face uma aparente
gravidez por outrem. Afinal, a maternidade de substituição representa,
às expressas, uma variante eloqüente da inseminação artificial
heteróloga, importando considerar que a cedente do útero, mesmo com seu
material genético, faz a cessão para um projeto parental de terceiros.
No segundo caso, mãe e pai em
constituindo um novo casal (convencional) preferem a uma adoção singular
(pai único), quando os parceiros separados e encomendantes possuem
idênticos direitos ao filho encomendado? Haverá, por certo, de
atender-se ao melhor interesse da criança, tutela máxima e absoluta.
Resta, portanto, concluir que as
ficções jurídicas da filiação transcendem os sistemas clássicos, sem o
determinismo biológico e com a conformação de novas interpretações, que
se extraem, inclusive, de fatores culturais e afetivos. A família
preexiste à ordem jurídica cuja interpretação deverá sempre dignificar
seus personagens, vivos ou idealizados em novela.
JONES FIGUEIRÊDO ALVES – o autor
do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),
coordena a Comissão de Magistratura de Família. Assessorou a Comissão
Especial de Reforma do Código Civil na Câmara Federal. Autor de obras
jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia
Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
AUTHOR:
Dimitre Soares
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