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outubro 02, 2017
O Direito de Família é POP, mas as questões de gênero no Brasil precisam de um rigoroso debate acadêmico e científico.
Dimitre
Soares
Professor
Adjunto de Direito de Família e Sucessões da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte – UFRN.
A mídia estabeleceu um paralelo
interessante com o Direito na última década. Ao mesmo tempo em que se
popularizou, lentamente, um modos
operandi singular de divulgar temas jurídicos de maneira “simplificada e
acessível”, numa supressão das etapas acadêmicas e técnicas para se tratar
determinadas questões que são áridas por natureza, houve também um despertar da
busca por “temas quentes”, que saídos diretamente dos livros universitários e
das aulas de graduação/pós-graduação, passam a ser tratados com desenvoltura
singular por fortes meios de comunicação, como as novelas, seriados e programas
jornalísticos.
Dentre todos os temas “da moda”, nenhum
chama tanto a atenção do “grande público” quanto o Direito de Família, que por
suas vicissitudes e idiossincrasias, mexe na alma e com a vida de quem está do
outro lado da notícia, sendo ou não profissional da área jurídica. Retratar a
vida afetiva, sexual e econômica das pessoas dá Ibope, gera audiência, visibilidade e, por óbvio, lucro certo. O
Direito de Família é POP, como nenhum
dos outros ramos do Direito.
É enorme
o conjunto de “revistas especializadas”, programas de TV (tanto em canais
abertos quanto no serviço por assinatura ou on
demand), sites, blogs, podcasts, perfis no Facebook
e no Instagram, contas no Twitter e canais no Youtube. É difícil encontrar um programa
de variedades, na rádio ou na TV, em que não apareça um profissional pronto a
“tirar dúvidas” sobre Direito de Família, explicar o último caso de repercussão
nacional julgado por determinado Tribunal ou... analisar a questão de Direito
de Família posta pela mais recente novela.
As emissoras, muito mais rápidas na
percepção do grande interesse coletivo sobre os temas, contratam “consultores”
que apresentam casos (reais ou não), para serem romantizados e incluídos
subliminarmente na dramaturgia profissional. Nos últimos anos, as novelas
brasileiras retrataram questões relativas à inseminação artificial,
parentalidade, incesto, relações afetivas entre irmãos, ascendência genética e
sua investigação, divórcio e separação, pensão alimentícia, guarda
compartilhada, famílias simultâneas, uniões homoafetivas, dentre outras, com
maior ou menor repercussão midiática. O tema da vez é a “mudança de sexo” e
suas consequências sociais e jurídicas, que vem sendo – diga-se de passagem –
muitíssimo bem tratado na novela “A Força
do Querer”, escrita pela badalada roteirista Glória Perez.
No enredo, a personagem de “Ivana”,
vivida pela atriz Carol Duarte, após anos de conflito com seu gênero definido
no sexo biológico, decide se submeter a um processo de transformação para
deixar de ser do sexo feminino e passar para o sexo masculino (gênero com o
qual se identifica), mas deixando claro que, apesar da transformação física
(através da utilização de hormônios masculinos) e visual, mantem a atração
sexual por pessoas do sexo masculino. Ao abordar a transexualidade, a Rede
Globo coloca o Direito de Família mais uma vez em evidência, sendo um dos assuntos
mais comentados em todo o país, prestando, inclusive, importante serviço de
informação e de combate ao preconceito sofrido por pessoas trans. O problema disso tudo é a forma pela qual a emissora aborda
quentões tão complexas.
É preciso dizer que, do ponto de vista
acadêmico, a questão não é tão simples como vem sendo retratada na novela do
horário nobre. Basta lembrar que há pelo menos duas correntes flagrantemente
contrárias sobre a possibilidade de mudança de sexo para pessoas transexuais. A
primeira delas diz respeito ao que se chama de “Teoria de Gênero”, a segunda à
“Ideologia de Gênero”. A primeira defende a simplificação dos processos
históricos e culturais de distinção entre o masculino e o feminino na concepção
do individuo enquanto ser em si e nas suas relações com a sociedade. A outra,
em sentido diametralmente oposto, compreende que o sexo biológico é definitivo
e definidor e a partir dele há uma construção sólida – e inafastável, social e
cultural, de condutas, comportamentos e manifestações afetivas e sexuais que o
indivíduo recebe na sua formação embrionária e carrega pelo resto da vida.
A divergência tem conclamado fortes
conflitos no âmbito religioso e até mesmo posicionamentos racistas, colocando
em lados bem distintos aqueles que acham que é possível e até natural a mudança
de sexo para acompanhar sua definição pessoal de gênero e os que pensam o
contrário: sexo biológico e gênero são não são dados disponíveis e aptos para
apropriações livres e de qualquer natureza. No que tange ao Direito de Família,
o fosso interpretativo e teórico/ideológico é muito maior.
Cabe lembrar que há robusta construção
teórica e legislativa sobre a manutenção das diferenças entre os sexos tanto no
Código Civil quanto nas legislações especiais. Questões sobre registro público,
direito matrimonial, impedimentos e causas suspensivas ao casamento ou à união
estável, aquisição de bens, autorizações maritais, presunções relativas sobre
filiação, temas relativos ao nome, identificação e definição ostensiva de sexo,
utilização de espaços públicos, normas sobre alistamento militar obrigatório, direito
reprodutivo, licenças e direitos trabalhistas, disposições de cunho
previdenciário e uma infinidade de outros direitos, direta ou indiretamente
relacionados à distinção entre sexos milenarmente estabelecida na concepção
legislativa. Não podem eles serem simplesmente esquecidos ou superados como uma
“simples opção”. Tal distinção profunda, a novela “A Força do Querer” não faz, nem permite supor, na medida em que
dilui a complexidade da temática através de ótimos atores, enquadramento
profissional na lente das câmeras, jogos de luz que valorizam a simpatia
popular ao tema e uma trilha sonora de emocionar qualquer mortal, trazendo,
inclusive, as muitas dificuldades que passam o transexual e seus familiares.
Ao largo da personagem fictícia que toma
hormônios masculinos comprados ilicitamente na academia de ginástica, o Direito
de Família se preocupa com as soluções reais, palpáveis e possíveis para
administrar a vida, concreta e sem rodeios, das pessoas que eventualmente fazem
essas escolhas para suas vidas, muitas delas sem compreender, sequer, a
dimensão concreta do abalo jurídico que uma decisão sobre mudança de sexo por
impactar em alguém (e na sua família), no entorno social, profissional e nas
suas consequências de ordem psicológica individual e de convivência comunitária
pelo resto da sua existência.
O
desencaixe formado entre o corpo biológico e a orientação sexual presente na
mente começa através de uma longa luta com o fim de se adaptar a sua identidade
de gênero. Quando a desarmonia insiste em permanecer, ataques de pânico, medo,
agonia, desconforto por ser quem é, raiva do próprio corpo, invisibilidade
social, depressão e automutilações começam a acontecer. Quando o gênero
biológico não corresponde às identificações naturais do sujeito, a situação
pode desafiar a sanidade mental daquele indivíduo e dos seus familiares.
Longe da ficção, as dificuldades
enfrentadas por pessoas que decidem mudar de sexo geram problemas que vão muito
mais além das dúvidas sobre qual banheiro utilizar (mesmo que essa distinção
entre banheiros masculinos e femininos estejam presentes até em companhias
aéreas), sobre a distinção da cor azul para meninos e rosa para meninas, ou
sobre a necessidade de um ativismo maquiado pelo marketing que gera (muito) lucro
voltado para a visibilidade do mundo trans.
O já desgastado argumento de que o
Direito precisa se adaptar às transformações da sociedade não autoriza que
mudanças estruturantes como a superação das diferenças entre masculino e
feminino, ou a livre escolha do gênero independentemente do sexo biológico
sejam feitas sem um debate geral, democrático e profundo. Urge registrar que
tais consequências podem ter certos efeitos mais ou menos previsíveis para
pessoas adultas e capazes, o que não se aplica aos menores de idade (por
exemplo), como vem sendo defendido por alguns, sob a alegação de que as
identificações com um ou outro gênero já nascem com a criança, e não são
adquiridos ao longo da vida.
A segurança jurídica, pilar inafastável
do sistema legal ocidental, decerto, deve ser o parâmetro mais seguro para
enfrentar o tema. Ou seja: definir como as demandas do público trans podem ser juridicamente
reconhecidas e sustentadas sem que haja ruptura com o direito codificado ou com
as regras de estabilidade, confiabilidade e de legitimidade que o Direito
(sobretudo o Direito de Família) precisa oferecer para a sociedade.
O Direito de Família é POP, e isso não é
ruim, ao contrário. A diminuição dos preconceitos e a convivência das
diferenças com elegância só será obtida a partir de um sincero debate – amplo,
aberto, inclusivo, técnico e contextualizado – sobre essas e outras questões
que importam para o mundo contemporâneo.
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AUTHOR:
Dimitre Soares
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