Família, herança e histórias de incesto
Sueli Brandão quer ser reconhecida como neta-filha-amante do bilionário Antônio Luciano Pereira, uma lenda em Minas Gerais por causa da voracidade sexual
Há dois meses, a dona de casa Sueli dos Reis Brandão, de 54 anos, entrou com uma ação de investigação de paternidade na Justiça de Minas Gerais. Ela afirma ser herdeira de parte de um patrimônio estimado em US$ 3 bilhões. A história da qual Sueli quer fazer parte está descrita em um processo de 118 volumes e 50 mil páginas, mas poderia ter sido escrita em linhas menos técnicas e mais cruas por Nélson Rodrigues. Ela diz ser integrante de uma família que lembra aquela criada por Nélson em Álbum de família, peça proibida pela censura em 1946, porque tratava de incesto. Sueli afirma à Justiça ser, ao mesmo tempo, filha e neta do empresário mineiro Antônio Luciano Pereira Filho, morto em 1990. Ela diz ser fruto de uma suposta relação incestuosa entre Antônio Luciano e uma de suas filhas, Ana Lúcia Pereira Gouthier. Afirma também ter sido amante do próprio pai, um personagem que nem Nélson Rodrigues teve a ousadia de criar.
Antônio Luciano foi uma lenda em Minas Gerais. Médico de formação, nunca exerceu a profissão, mas sempre gostou de se vestir de branco. Era conhecido como o “dono de Belo Horizonte”. Chegou a ter 30 mil lotes e prédios urbanos. Nos anos 1960, era dono de todos os cinemas da cidade e de 256 fazendas espalhadas por Minas, Goiás e Mato Grosso. Dividir um patrimônio desse tamanho seria difícil em qualquer situação. Mas a voracidade sexual de Antônio Luciano ainda complicou mais as coisas. Pelo que se sabe até agora, ele teve 30 filhos com 28 mulheres diferentes. Três deles foram com Clara, a única mulher com quem Antônio Luciano se casou. Os outros 27 foram sendo reconhecidos judicialmente ao longo dos anos. O processo judicial de divisão dos bens começou antes mesmo da morte de Antônio Luciano. Agora, a um ano do fim do prazo para que possíveis herdeiros se apresentem, novas ações na Justiça, como a de Sueli, prometem embaraçar a mais complexa partilha de bens já ocorrida no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Além de milionário e mulherengo, Antônio Luciano ganhou fama pelos hábitos sexuais exóticos. Assim como Jonas, o pai da história de Álbum de família, Antônio Luciano era um “colecionador de virgens”. Segundo o jornalista Durval Guimarães, que prepara um livro sobre ele, Antônio Luciano afirmava ter mantido relações sexuais com mais de 2 mil virgens. A maioria delas, de acordo com Guimarães, eram moças pobres, entregues a ele por seus pais em troca de dinheiro. Na sede da imobiliária Fayal, de onde administrava seu patrimônio, Antônio Luciano também negociava virgindades.
Sueli dos Reis Brandão afirma ser a 31ª filha de Antônio Luciano. Ela diz ser filha dele com outra filha, Ana Lúcia Pereira Gouthier. O incesto não é novidade no currículo de Antônio Luciano. Um dos 27 filhos reconhecidos por ele, Antônio Mendes Rodrigues, também é filho-neto: é fruto da relação de Antônio Luciano com Clausy Soares Rodrigues, uma de suas filhas. Antônio seria, ao mesmo tempo, filho e irmão de Clausy. Quando perguntado sobre incesto, nos anos 1980, Antônio Luciano usou uma comparação com passarinhos – outra de suas paixões – para se explicar. “Passarinho não tem pai, só tem mãe”, disse. “Passarinho tem filhos com suas filhas porque a figura do pai não existe.”
O caso de Sueli é estranho, porém, até para o heterodoxo padrão sexual de Antônio Luciano. Segundo ela, em seu caso, a vida teria ido ainda um pouco mais longe do que Nélson Rodrigues imaginou em Álbum de família. Na peça, Glória, a filha de Jonas, não consuma o amor pelo pai. Mas Sueli diz que, além de ser filha de uma relação incestuosa, ela mesma teria sido amante de Antônio Luciano, seu pai-avô. Sueli diz que a relação dos dois era “especial”. Ela afirma que teve em mãos um testamento, escrito de próprio punho por Antônio Luciano, que destinava a ela 30% de uma usina de açúcar em Lagoa da Prata, no interior de Minas. Sueli diz ter feito exames de DNA, quando começaram as negociações entre os herdeiros para a partilha do patrimônio. Também afirma ter participado de diversas audiências com os irmãos. Seu nome, porém, não consta em nenhum dos registros do acordo firmado entre os herdeiros reconhecidos. “Sumiram com meu DNA e fingem que não me conhecem, mas eles sabem muito bem quem eu sou”, diz Sueli. “Eles não querem que um escândalo desses venha à tona.”
Antônio Luciano fez cinco testamentos, que foram lidos por ÉPOCA. Apenas um deles foi escrito de próprio punho, para deserdar um dos filhos extramatrimoniais, Lhano Nelson. Lhano entrou com a primeira ação judicial para obrigar Antônio Luciano a reconhecer os filhos ilegítimos. Sueli não é citada em nenhum dos testamentos. Nem mesmo como “Suelen Luciania Pereira”, que é o nome pelo qual, segundo ela, era chamada por Antônio Luciano. Em seus documentos, Sueli é filha de Acasia Carolina dos Reis Brandão. Mas, segundo ela, foi registrada em nome de falsos pais biológicos para acobertar a história incestuosa entre Antônio Luciano e a filha Ana Lúcia Pereira Gouthier.
Na ação que tramita na 7a Vara do Fórum Lafayette, em Belo Horizonte, Sueli dos Reis Brandão pede, além da investigação de paternidade e maternidade, pagamento de pensão alimentícia de R$ 300 mil. Ela justifica o pedido com a afirmação de que tem problemas de saúde, que a impediriam de “garantir sua subsistência”. Em 2007, Sueli entrou com uma ação para obrigar Ana Lúcia, sua suposta mãe biológica, a apresentar a certidão de nascimento original, em nome de Suelen, que teria sido feita num cartório de Apucarana, no Paraná. Uma cópia dessa certidão foi anexada aos autos. Mas o cartório afirma que o documento é falso. “Basta que se faça o DNA e tudo ficará esclarecido”, diz a advogada de Sueli, Patrícia Viana Vidigal.
Os herdeiros legítimos não aceitam o teste de DNA de Sueli. Para Paulo Eduardo Mello, advogado de Ana Lúcia Pereira Gouthier – que Sueli afirma ser sua irmã e mãe biológica –, a história de Sueli é fantasiosa. Segundo ele, mais de 15 ações de investigação de paternidade sem fundamento já chegaram ao Judiciário. “São pessoas aventureiras que estão atrás de um acordo para abafar o caso”, diz. “Não vamos fazer acordo com ninguém. Se concordarmos, vai chover gente aqui querendo fazer DNA só porque se acha um pouco parecido com o Antônio Luciano.” Mello não acredita que a Justiça determinará a realização do exame de DNA no caso de Sueli. “Ela não apresenta nenhuma prova que possa levar a Justiça a determinar isso”, diz.
Antes de morrer, pressionado pelos pedidos de reconhecimento dos filhos ilegítimos, Antônio Luciano tentou evitar disputas dividindo seu patrimônio. Uma junta dos mais respeitados juristas de Minas foi convocada para elaborar o complicado termo de transação entre vivos, que pretendia evitar uma disputa sem fim na Justiça. Em vida, Antônio Luciano e sua mulher, Clara, doaram tudo o que tinham aos três filhos (Antônio Luciano Neto, Ana Lúcia Pereira Gouthier e Clara Luciano Henriques), em partes iguais. Mas a morte de Clara, em 1987, deu iníco à disputa. Os filhos extramatrimoniais de Antônio Luciano temiam que os três legítimos tomassem posse de parte maior do que lhes cabia. Para evitar questionamentos na Justiça sobre a doação feita em vida, os três filhos do casamento, Antônio Luciano Neto, Ana Lúcia e Clara, concordaram em dividir toda a parte do patrimônio que cabia ao pai – ou seja, 50% dos US$ 3 bilhões. A outra metade caberia apenas a eles, por serem filhos de Clara e Antônio Luciano. O patrimônio a ser dividido era formado por ações e cotas em 12 sociedades empresariais. Cada um dos 26 filhos fora do casamento teve direito ao equivalente a US$ 20 milhões. Após a morte de Antônio Luciano, em 1990, o termo de transação foi homologado, com o aval do Ministério Público.
Depois do acordo entre os 29 filhos, em 1990, apenas um novo herdeiro conseguiu ser reconhecido na Justiça. O jornalista Carlos Alberto Silva entrou com uma ação judicial em 2002. Ele soube que era filho do bilionário Antônio Luciano quando a mãe lhe revelou a verdade no leito de morte. Silva ganhou, na Justiça, o direito de ser submetido ao exame de DNA. Mas o resultado positivo não o colocou automaticamente perto da fortuna. Como a partilha dos bens já estava concluída entre os 29 herdeiros, Silva precisou impetrar uma ação contra todos eles para que cada um lhe devolva a parte dos 1/30 avos que lhe cabe na herança. Mas a tarefa é complexa. Aqueles US$ 20 milhões entregues aos 26 herdeiros não estão intocados. A maior parte do patrimônio era de imóveis, que foram sendo vendidos ao longo do tempo. Alguns herdeiros administraram bem a herança e multiplicaram a fortuna. Outros, pessoas de origem simples, perderam tudo. Há quem esteja quase tão pobre quanto era antes de receber a herança. Carlos Alberto Silva morreu, mas suas duas filhas continuam com a ação.
No ano passado, a partilha dos bens se tornou mais intricada. Toda a transação feita antes da morte de Antônio Luciano foi considerada irregular. O juiz da 1a Vara de Sucessões, Júlio César Lorens, anulou todas as ações do inventário desde 1990. O juiz determinou o afastamento de Antônio Luciano Pereira Neto, filho de Antônio Luciano, do posto de inventariante. Em março, Lucianinho, como é conhecido, retomou o posto. No meio dessa confusão jurídica, Sueli tenta ser reconhecida como filha-neta-amante de Antônio Luciano. Se isso um dia acontecer, tudo terá de ser dividido de novo para dar a ela parte de um dinheiro que, em muitos casos, nem existe mais. Nem Nélson Rodrigues arriscaria imaginar o fim dessa saga.
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