dezembro 03, 2014
STJ - O direito dos indivíduos transexuais de alterar o seu registro civil
O
nome é mais que um acessório. Ele é de extrema relevância na vida
social, por ser parte intrínseca da personalidade. Tanto que o novo Código Civil trata o assunto em seu Capítulo II, esclarecendo que toda pessoa tem direito ao nome, compreendidos o prenome e o sobrenome.
Ao
proteger o nome, o CC de 2002 nada mais fez do que concretizar o
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, previsto no
artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.
Essa
tutela é importante para impedir que haja abuso, o que pode acarretar
prejuízos e, ainda, para evitar que sejam colocados nomes que exponham
ao ridículo seu portador.
Uma
realidade que o Poder Judiciário brasileiro vem enfrentando diz
respeito aos indivíduos transexuais. Após finalizar o processo
transexualizador – com a cirurgia de mudança de sexo -, esses cidadãos
estão buscando a Justiça para alterar o seu registro civil, com a
consequente modificação do documento de identidade.
Sem legislação
Entretanto,
não há no Brasil uma legislação que regulamente e determine a alteração
imediata do registro civil. Assim, resta ao transexual pleitear
judicialmente a alteração.
Alguns
juízes permitem a mudança do prenome do indivíduo, com fundamento nos
princípios da intimidade e privacidade, para evitar principalmente o
constrangimento à pessoa. Outras decisões, por sua vez, não acatam o
pedido, negando-o em sua totalidade, com base estritamente no critério
biológico.
Há
também decisões que, além da alteração do prenome, determinam que a
mesma seja feita com a ressalva da condição transexual do indivíduo, não
alterando o sexo presente no registro. Finalmente, há decisões que não
só permitem a mudança do prenome como a do sexo no registro civil.
O
Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem autorizando a modificação do
nome que consta do registro civil, bem como a alteração do sexo.
Entretanto, consigna que a averbação deve constar, apenas do livro
cartorário, vedando qualquer menção nas certidões do registro público,
sob pena de manter a situação constrangedora e discriminatória.
Segundo
o ministro da Quarta Turma do STJ Luis Felipe Salomão, se o indivíduo
já realizou a cirurgia e se o registro está em desconformidade com o
mundo fenomênico, não há motivos para constar da certidão.
Isso
porque seria um opróbrio ainda maior para o indivíduo ter que mostrar
uma certidão em que consta um nome do sexo masculino. Entretanto, a
averbação deve constar do livro cartorário. “Fica lá no registro,
preserva terceiros e ele segue a vida dele pela opção que ele fez”,
afirmou o ministro.
Vida digna
Para
a ministra Nancy Andrighi, quando se iniciou a obrigatoriedade do
registro civil, a distinção entre os dois sexos era feita baseada na
conformação da genitália. Hoje, com o desenvolvimento científico e
tecnológico, existem vários outros elementos identificadores do sexo,
razão pela qual a definição de gênero não pode mais ser limitada somente
ao sexo aparente.
“Todo
um conjunto de fatores, tanto psicológicos quanto biológicos, culturais
e familiares, devem ser considerados. A título exemplificativo, podem
ser apontados, para a caracterização sexual, os critérios cromossomial,
gonadal, cromatínico, da genitália interna, psíquico ou comportamental,
médico-legal, e jurídico”, afirma a ministra.
Para
Andrighi, se o Estado consente com a possibilidade de realizar-se
cirurgia de transgenitalização, logo deve também prover os meios
necessários para que o indivíduo tenha uma vida digna e, por
conseguinte, seja identificado jurídica e civilmente tal como se
apresenta perante a sociedade.
Averbação no registro
O
primeiro recurso sobre o tema foi julgado no STJ em 2007, sob a
relatoria do falecido ministro Carlos Alberto Menezes Direito. No caso, a
Terceira Turma do STJ, seguindo o voto do ministro, concordou com a
alteração, mas definiu, na ocasião, que deveria ficar averbado no
registro civil do transexual que a modificação do seu nome e do seu sexo
decorreu de decisão judicial.
De
acordo com o ministro Direito, não se poderia esconder no registro, sob
pena de validar agressão à verdade que ele deve preservar, que a
mudança decorreu de ato judicial nascida da vontade do autor e que se
tornou necessário ato cirúrgico.
“Trata-se
de registro imperativo e com essa qualidade é que se não pode impedir
que a modificação da natureza sexual fique assentada para o
reconhecimento do direito do autor”, afirmou o ministro, à época.
Livro cartorário
Em
outubro de 2009, a Terceira Turma, em decisão inédita, garantiu ao
transexual a troca do nome e do gênero em registro, sem que constasse a
anotação no documento. O colegiado determinou que o registro de que a
designação do sexo foi alterada judicialmente constasse apenas nos
livros cartorários.
A
relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, afirmou que a observação
sobre alteração na certidão significaria a continuidade da exposição da
pessoa a situações constrangedoras e discriminatórias.
“Conservar
o ‘sexo masculino’ no assento de nascimento do recorrente, em favor da
realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social,
bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado em
tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em
estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver
dignamente”, concluiu a ministra.
Exposição ao ridículo
O
mesmo entendimento foi aplicado pela Quarta Turma, em dezembro de 2009.
O relator do recurso, ministro João Otávio de Noronha, destacou que a Lei 6.015/73
(Lei de Registros Públicos) estabelece, em seu artigo 55, parágrafo
único, a possibilidade de o prenome ser modificado quando expuser seu
titular ao ridículo.
“A
interpretação conjugada dos artigos 55 e 58 da Lei de Registros
Públicos confere amparo legal para que o recorrente obtenha autorização
judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o pelo apelido
público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive”, disse o
ministro.
Na
ocasião, Noronha afirmou ainda que o julgador não deve se deter em uma
codificação generalista e padronizada, mas sim adotar a decisão que
melhor se coadune com valores maiores do ordenamento jurídico, tais como
a dignidade das pessoas.
Quanto
à averbação no livro cartorário, o ministro afirmou que é importante
para salvaguardar os atos jurídicos já praticados, para manter a
segurança das relações jurídicas e, por fim, para solucionar eventuais
questões que sobrevierem no âmbito do direito de família (casamento), no
direito previdenciário e até mesmo no âmbito esportivo.
Renascimento
Para
a transexual Bianca Moura, 45 anos, a mudança do registro civil foi um
renascimento. Servidora pública do Governo do Distrito Federal, a
maranhense conseguiu a alteração em setembro de 2011, um ano e meio
depois de dar entrada em toda a documentação.
“Procurei
o Judiciário em fevereiro de 2010 com meus documentos, fotos, laudos,
tudo. Um ano e meio depois, recebi uma carta comunicando a sentença. Ao
conversar com o juiz, fui avisada que teria que ir até o Maranhão,
estado onde nasci, para pegar a nova certidão. Fui até lá com minha mãe.
O processo foi muito tranquilo”, disse.
Bianca
começou sua transformação há 20 anos, em uma época que não se tinha
nenhuma perspectiva de se fazer o processo de readequação de gênero,
quanto mais no registro. Ela ainda está na fila do Sistema Único de
Saúde (SUS), aguardando a sua vez de realizar o procedimento. Mas isso
não a impediu de ir atrás de seus direitos.
“Sempre
quis ser reconhecida civilmente como uma mulher. É de extrema
importância para mim que o estado reconheça a minha identidade. O não
reconhecimento me causou inúmeros constrangimentos. Nem todo mundo
aceita te chamar pelo nome social. Acredito que todos os transexuais
desejem ter sua identidade reconhecida e respeitada”, afirmou Bianca.
Nome
social é o nome pelo qual os transexuais e travestis são chamados
cotidianamente, em contraste com o nome oficialmente registrado, que não
reflete sua identidade de gênero.
Projeto de lei
Está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5.002/2013,
de autoria do deputado Jean Wyllys (PSol-RJ) e da deputada Erika Kokay
(PT-DF), que trata da viabilização e desburocratização para o indivíduo
ter assegurado, por lei, o direito de ser tratado conforme o gênero
escolhido por ele.
A
proposta obriga o SUS e os planos de saúde a custearem tratamentos
hormonais integrais e cirurgias de mudança de sexo a todos os
interessados maiores de 18 anos, aos quais não será exigido nenhum tipo
de diagnóstico, tratamento ou autorização judicial.
De
acordo com o PL, não será necessário entrar na justiça para conseguir a
mudança do nome e toda pessoa poderá solicitar a retificação registral
de sexo e a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação
pessoal sempre que não coincidam com a sua identidade de gênero
autopercebida.
Segundo
a proposta, mesmo um menor que não tenha consentimento dos pais poderá
recorrer à defensoria pública para que sua vontade de mudança de nome
seja atendida. Menores de 18 anos poderão ainda fazer cirurgia de
mudança de sexo, mesmo sem a autorização dos pais, seguindo os critérios
da alteração do registro civil.
O
projeto de lei diz que a mudança do sexo não altera o direito à
maternidade ou à paternidade. Também será preservado o matrimônio, se os
cônjuges quiserem, sendo possível retificar a certidão do casamento,
para constar a união homoafetiva.
Os números dos processos não são divulgados em razão de segredo judicial.
Fonte: STJ
AUTHOR:
Dimitre Soares
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