Artigo do professor Pablo Stolze Gagliano
1. Introdução e Noção Básica de Divórcio
Não é novidade que o divórcio é uma medida dissolutória do vínculo
matrimonial válido, importando, por consequência, na extinção de deveres
conjugais.
Trata-se, em outras palavras, de uma forma de extinção da relação
conjugal, sem causa específica, decorrente da simples manifestação de
vontade de um ou ambos os cônjuges.
Em 2010, com a aprovação da Emenda Constitucional nº
66, verdadeira revolução se fez sentir.
Suprimiu-se a separação judicial[1], desaparecendo, igualmente, o
requisito temporal para o divórcio, que passou a ser exclusivamente
direto, tanto por consentimento dos cônjuges, quanto na modalidade
litigiosa.
Trata-se, como dito, de uma completa mudança de paradigma, em que o
Estado buscou se afastar da intimidade do casal, reconhecendo a sua
autonomia para extinguir, pela sua livre vontade, o vínculo conjugal,
sem necessidade de requisitos temporais ou de motivação vinculante, na
perspectiva do princípio da intervenção mínima do Direito de Família.
Vigora, mais do que nunca, agora, o princípio da ruptura do afeto – o qual busca inspiração no“Zerrüttungsprinzip” do Direito alemão (princípio da desarticulação ou da ruína da relação de afeto) – como simples fundamento para o divórcio[2].
É o reconhecimento do divórcio como o exercício de umdireito potestativo[3], cujo exercício somente compete aos cônjuges[4], não afetando, porém, a sua relação com os filhos.
2. Tipologia
Convivem, atualmente, em nosso sistema, duas modalidades de divórcio:
a) o
divórcio extrajudicial ou administrativo, previsto pela Lei nº
11.
441, de 04 de janeiro de 2007, lavrado por Tabelião, mediante escritura
pública, desde que seja consensual e não haja filhos menores ou
incapazes[5].
b) o divórcio judicial –
litigioso ou consensual-, por seu turno, desafia um procedimento
conduzido por um Juiz de Direito, findando-se por meio da prolação de
uma sentença.
Bem, o nosso interesse, na elaboração deste texto, não é trazer à baila noções tão comuns e amplamente conhecidas.
Pretendemos ir um pouco mais além.
3. Divórcio Liminar: Possibilidade Jurídica
Nada impede que, em se tratando de divórcio litigioso – aquele que
desafia um procedimento judicial contencioso -, a parte autora
acrescente ao pedido de dissolução do vínculo matrimonial pleitos de
natureza diversa, como a fixação de pensão alimentícia, partilha de bens
e definição da guarda de filhos, caracterizando uma cumulação de
pedidos, a teor do art.
293 do
Código de Processo Civil, especialmente à luz do seu parágrafo segundo, com os temperamentos peculiares ao Direito Processual de Família.
Nesse contexto, embora o pedido de divórcio seja de meridiana clareza e
inegável simplicidade – por não exigir exposição de motivos ou
fundamento – os demais poderão exigir uma instrução mais complexa,
demorada e desgastante, impedindo a solução imediata da lide.
Em nossa experiência judicante, atuando por mais de 13 anos em juízo que
também detinha competência para dirimir demandas atinentes ao Direito
de Família, foi marcante a solicitação formulada, em audiência, por
ambas as partes, marido e mulher, que também litigavam a respeito de
pensão alimentícia e partilha de bens:
“Dr. Pablo, por favor, o senhor não poderia nos divorciar logo, enquanto o ‘processo corre’?”.
“Por que não?”, foi o pensamento que veio à mente.
O processo serve à vida.
Não haveria sentido em se manter aquele casal – cujo afeto ruiu –
matrimonialmente unido, considerando-se não haver mais condição ou
requisito para o divórcio, enquanto se discutiam – durante semanas,
meses, ou, talvez, anos – os efeitos paralelos ou colaterais do
casamento, a exemplo do valor da pensão ou do destino dos bens.
Raciocínio diverso, em uma sociedade acentuadamente marcada pela
complexidade das relações sociais – no dizer profético de DURKHEIM – com
todas as dificuldades imanentes ao nosso sistema judicial, é, em nosso
sentir, uma forma de imposição de sofrimento àqueles que já se
encontram, possivelmente, pelas próprias circunstâncias da vida,
suficientemente punidos.
E este sofrimento – fala-se, aqui, em strepitus fori –
prolonga-se, quando a solução judicial, em virtude de diversos fatores
alheios à vontade do casal, não se apresenta com a celeridade devida.
Por isso, nada impede que o juiz, liminarmente, antecipe os efeitos definitivos da sentença, com amparo no art.
273,
§ 6º, do
Código de Processo Civil, para decretar, ainda no curso do processo, o divórcio do casal:
Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou
parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde
que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da
alegação e: (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto
propósito protelatório do réu. (Incluído pela Lei nº 8.952, de
13.12.1994)
(…)
§
6º A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais
dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. (grifamos)
Empregamos, conscientemente a expressão “divórcio liminar”, na medida em
que se trata de providência que pode ser adotada no limiar do processo,
ou seja, in limine litis.
E não olvidamos que, em essência, trata-se da antecipação dos efeitos
definitivos incontroversos da sentença, porquanto, como dito acima, por
se tratar, o divórcio, de um direito potestativo, não haveria razão ou
justificativa de mérito hábil a impedir a sua decretação[6].
Nesse contexto, podemos concluir, então, ser juridicamente possível que o
casal obtenha o divórcio mediante uma simples medida liminar,
devidamente fundamentada, enquanto ainda tramita o procedimento para o
julgamento final dos demais pedidos cumulados.
Tal conclusão vai ao encontro dos princípios fundamentais do novo
Direito de Família, na perspectiva sempre presente da dignidade da
pessoa humana.[7]
E que eles sejam felizes.
Notas
[1] Em um dos pioneiros (quiçá o primeiro) acórdãos brasileiros sobre o
tema, o TJMG enfrentou a questão, incidentalmente, afirmando
expressamente a extinção da separação judicial no ordenamento jurídico
brasileiro. Trata-se dos autos nº 0315694-50.2010.8.13.0000, relatado
pelo Desembargador DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA, com julgamento em
21/10/2010 e publicação do acórdão em 12/11/2010. Confira-se trecho do
julgado: “É de se registrar que a doutrina vem entendendo que a edição
da EC
66/10
extirpou do nosso ordenamento jurídico o instituto da separação
judicial, prevendo como forma de extinção do vínculo matrimonial apenas o
divórcio, o que geraria, por certo, superveniente impossibilidade
jurídica do pedido formulado na ação originária deste recurso,
culminando na extinção do feito sem julgamento do mérito. Não obstante,
em homenagem aos princípios da economia e da celeridade processuais,
tenho que deve ser possibilitada às partes a oportunidade de requerer a
conversão de seu pedido de separação judicial em divórcio, porquanto é
cediço que a extinção do processo os obrigará a manejar novo feito,
agora pleiteando o divórcio, para que seja logrado seu objetivo, no
sentido do desfazimento do vínculo matrimonial (…)”. No Estado da Bahia,
por sua vez, em encontro promovido pela Corregedoria Geral da Justiça,
os Juízes das Varas de Família da capital aprovaram, à unanimidade,
proposta de enunciado no sentido do reconhecimento da supressão do
instituto jurídico da separação, a partir da entrada em vigor da Emenda
do Divórcio. Todavia,
registro que se trata de matéria polêmica,
havendo corrente que sustenta a mantença do instituto. Em nosso sentir,
como dito, trata-se de figura obsoleta, cuja preservação, após a edição
da Emenda, representaria violação ao denominado princípio da vedação ao
retrocesso (sobre o tema,
cf.
O Novo Divórcio e Novo Curso de Direito Civil – Direito de Família – As
Famílias em Perspectiva Constitucional, Ed. Saraiva, obras escritas em
coautoria com Rodolfo Pamplona Filho, que serviram de base para este
artigo).
[2] Sobre o divórcio na Alemanha, recomendamos a leitura das
considerações de VOPPEL, Reinheard, Kommentar zum Bürgerlichen
Gesetzbuch mit Einführunsgesezt und Nebengesetzen – Eckpfeiler des
Zivilrechts, J. Von Satudingers, Berlin, 2008.
[3] Passamos todo o bacharelado em Direito ouvindo a expressão “direito
potestativo”. Mas, de fato, compreendemos o seu sentido? Trata-se de um
direito de interferência. Vale dizer, cuida-se de um direito que, ao ser
exercido, interfere na esfera jurídica de terceiro, sem que esta pessoa
nada possa fazer, a exemplo do direito de revogação ou de renúncia, no
mandato, ou, como visto acima, do direito de divórcio.
[4] “Art. 1.582. O pedido de divórcio somente competirá aos cônjuges.
Parágrafo único. Se o cônjuge for incapaz para propor a ação ou defender-se, poderá fazê-lo o curador, o ascendente ou o irmão.”
[5] Outros Estados no mundo admitem a modalidade administrativa de
divórcio, como se dá no Direito Português, a respeito do qual escrevem
Francisco Coelho e Guilherme de Oliveira: “O processo de divórcio por
mútuo consentimento ‘administrativo’, decidido em conservatória do
registro civil, está regulado nos arts. 271-274. CRegCiv”, e, mais
adiante, complementam: “A decisão do conservador que tenha decretado o
divórcio é notificada aos requerentes e dela cabe recurso ao Tribunal de
Relação.” (Curso de Direito de Família – Vol. I – Introdução – Direito
Matrimonial, 2 ed., Portugal: Coimbra Editora, 2001, págs. 604-605).
[6] De fato, formulado o pedido de divórcio, no bojo de um procedimento
judicial litigioso, uma vez citada a parte adversa, este ato citatório
tem, em essência, a precípua função de dar-lhe ciência do pleito
formulado, para permitir a instalação da relação jurídica processual. No
mérito, todavia, a parte citada não terá maior espaço de defesa, na
medida em que o pedido é imotivado, dispensando-se prazo mínimo para a
sua apresentação. Ao menos em tese, e para efeito de investigação
acadêmica, poderia o (a) demandado (a), em defesa, alegar a invalidade
do casamento. De fato, a aferição da invalidade precederia a apreciação
do divórcio. Todavia, na situação tomada como referência para o
desenvolvimento argumentativo deste artigo, partimos da premissa de ser
válido o casamento objeto do divórcio. Em tal hipótese, a capacidade
defensiva de mérito do réu queda-se esvaziada.
[7] Devemos interpretar adequadamente a Lei nº
6.015, de 31 de dezembro de 1973 (
Lei de Registros Publicos), segundo o panorama normativo inaugurado pela Emenda Constitucional nº
66 de
2010, para se admitir que, não apenas em caso de sentença (como se lê
em seu art. 167, II, 14), mas também de decisão interlocutória – em face
da qual não haja recurso pendente – possa, o Oficial de Registro,
proceder com a necessária averbação da dissolução do vínculo
matrimonial.
Fonte: site Jus Navigandi
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