maio 08, 2014
Artigo: "Famílias Mútuas", por Jones Figueirêdo Alves
A
troca de bebês em maternidades, nascidos em mesmo dia, decorrente da
ineficiência da administração hospitalar, tem provocado que famílias
assumam como filhos os que são de outras, tendo-os, todavia, como
verdadeiros filhos, ao fim e ao cabo da convivência familiar prolongada,
em manifesta parentalidade socioafetiva.
As primeiras repercussões fáticas são
danosas, quando a não semelhança física com os pais, permite
“inconvenientes desconfianças” do cônjuge varão, que levam, em alguns
casos, à separação judicial, ou à compreensão social do “filho de
criação”; culminando, outrossim, com a realização de exames genéticos
para a verificação da paternidade e, ao depois, a procura e
identificação do filho biológico trocado.
As soluções subsequentes são a destroca
dos filhos (em medida do possível) a retificação dos registros civis
pessoais (com mudança dos prenomes) e as indenizações por danos morais
(de caráter compensatório); quando, em bom rigor, as sequelas
psicológicas são profundas, os fatos da vida se tornaram inexoráveis
pelos danos existenciais causados, valendo, anotar, por essencial, os
vínculos socioafetivos que jamais se desfazem.
A propósito, notável julgado da 1ª
Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco, onde
relator o desembargador Erik de Sousa Dantas Simões, juiz decisor de
primeiro grau o magistrado Glacidelson Antonio da Silva (1ª Vara da
Fazenda Pública da Comarca de Garanhuns; sentença em DJe. nº 123/2011,
de 07.07.2011, pp. 1.182-1.185) e patrono dos autores o advogado
Ivonaldo de Albuquerque Porto, confirmou a responsabilização civil
estatal por troca de bebês, com o significativo de que ambas as famílias
e os menores impúberes ajuizando, em conjunto, a ação indenizatória,
permaneceram aqueles em companhia dos seus pais registrais, civis e
sociafetivos, por inarredável situação consolidada de amor
paterno-filial entre eles. (TJPE - DJe. nº 45/2014, de 10.03.2014, pp.
167-168).
“Bem que fartos em amor, como natural,
puderam ter em J.R.B.S.J., a satisfação de tê-lo amado como filho e
continuarão a ama-lo como tal”, disseram os primeiros pais na petição
inicial da ação proposta, o mesmo repetindo os segundos, em relação a
L.F. de S.
Os bebês nasceram no mesmo dia
(30.05.1998), no mesmo hospital, com uma diferença de apenas oito
minutos, trocados na primeira hora, e somente sete anos depois
(25.04.2005), tiveram, por exame genético, suas verdadeiras origens
biológicas reveladas.
As decisões recíprocas dos pais
afetivos, uns e outros, de mantê-los no lar original de cada um, onde
foram criados e amados, ao tempo que exaltam a paternidade e maternidade
socioafetivas fazem, em ato instante, uma cumplicidade inevitável com o
destino deles, mormente quando, na hipótese, tudo evidencia uma
desigualdade econômica das famílias envolvidas. Essa singularidade mais
enaltece o triunfo do amor, cuja prevalência tem seguido precedentes
dignificantes:
(i) o caso “Stanley e Jobson”, em
Cruzeiro do Sul, no Acre, quando somente quinze anos depois (05.2013)
foi descoberta a troca, mantiveram-se os jovens com suas genitoras
afetivas, decidindo ambas as famílias estabelecer encontros para a
dinâmica de convivência entre os filhos e as mães biológicas Maria Lúcia
Bezerra e Ana Cláudia Ramos; (ii) o caso “Franciele e Danielle”, em
Foz do Iguaçu, no Paraná, quando trocadas em maternidade (23.10.1995), o
que somente constatado sete depois, decidiram também as famílias em não
desfazer a troca, morarem próximas, tornando-se duas famílias unidas.
Em situações que tais, recolhem-se
esses fatos da vida como elementos indutores ao surgimento determinante
do que ora se denomina de “famílias mútuas”. Famílias mútuas serão
aquelas, portanto, que se apresentam formadas por mães e pais que
assumindo, efetivamente, a socioafetividade parental de seus filhos, que
lhes foram remetidos pelo destino, desde o berço trocado, não deixam,
todavia, de proteger o vinculo biológico com os seus filhos
consanguíneos em poder de outra família, cuja permanência ali se oferece
como ditame da mesma socioafetividade preordenada.
Há um outro dignificante exemplo, no
caso russo da família Belyaeva, quando sua filha Anya foi trocada por
Irina, filha de uma família muçulmana, a do tadjique Naimat Iskanderov,
tendo o tribunal de Kopeisk, nos montes Urais, condenado o hospital a
uma indenização de U$ 100 mil (2011). As duas famílias, independente de
tradições, costumes e religião diferentes, decidiram utilizar a
indenização para possibilitar residências próximas ou até uma moradia
multifamiliar, para as crianças crescerem juntas com todos os pais.
Anota-se que a troca de bebês em
maternidades, notadamente públicas, tem sido um fenômeno crescente, não
obstante medidas de segurança, normas internas ou municipais e a tímida
tipificação penal referida pelo art. 229 do Estatuto da Criança e do
Adolescente, no atinente à correta identificação do neonato e da
parturiente, por ocasião do parto. Os julgamentos dos tribunais
brasileiros, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, têm sido
frequentes, a assinalar a responsabilização civil por ilicitudes dessa
espécie.
No caso mais recente, anota-se com
louvor que, para além da condenação do Estado de Pernambuco à
indenização no valor de R$ 300 mil por danos morais para todos os
autores (pais e filhos), foi acrescida a obrigação de o Estado fornecer
tratamento psicológico a todos eles, pelo prazo de dois anos.
No ponto, tenha-se por refletir da
impostergável construção jurídica do instituto do “pensionamento por
dano existencial”, de prazo determinado ou permanente, em moldura
jurídica equipotente à do “pensionamento por morte”, do art. 948, I, do
Código Civil; ou seja, uma “pensão civil por dano” destinada a suprir
não apenas as despesas necessárias de tratamento psicológico de suporte
às situações de adequação supervenientes ao ilícito mas, sobremodo, as
despesas advenientes e dirigidas à uma dinâmica de convivência dos pais
com os filhos biológicos que permaneçam na família socioafetiva
preestabelecida.
De efeito, há que se incluir na
doutrina e na jurisprudência, o abrigo jurídico mais apropriado a reger
as situações de vida onde as famílias mútuas, surgidas pela prevalência
do afeto, edificam presença eloquente de dignidade. São exemplos de
multiparentalidade, no entrelace de fatos, que a ordem jurídica, por
certo, também haverá de, sem submissão a dogmas, necessariamente
contemplar. Quando separadas por troca, em Rio Verde (Goiás), há vinte e
seis anos atrás, as gêmeas Kátia Sousa e Juliana Flausina,
descobriram-se irmãs, em ocasião que foram trabalhar na mesma loja de
sapatos, o destino orienta que o direito deve compreender melhor a vida.
JONES FIGUEIRÊDO ALVES – O autor
do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),
coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
AUTHOR:
Dimitre Soares
Nenhum comentário:
Postar um comentário