Amigos, segue abaixo artigo de minha autoria publicado no site nacional do IBDFAM (www.ibdfam.org.br).
Boa leitura a todos!
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Relações
de Família na Perspectiva Intelectual de Carlo Ginzburg
Dimitre Braga Soares de Carvalho
Vice-Presidente do
IBDFAM-PB. Advogado especializado em Direito de Família. Professor de Direito
de Família da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Mestre em
Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Doutorando em Direito pela
PUC-Buenos Aires.
Resumo:
A teoria da “Micro-história”,
amplamente difundida pela obra de Carlo
Ginzburg, guarda profunda conexão com o recente fenômeno da judicialização
das relações de família, presente na atual jurisprudência brasileira que trata
da matéria. A análise dos detalhes, dos episódios e das nuanças que compõem
quaisquer relações de família permite compreender a realidade própria de cada
entidade familiar, respeitando suas escolhas, suas diferenças e suas qualidades
intrínsecas. Ao juiz, que se debruça sobre a matéria familiarista, a
perspectiva do historiador do caso concreto possibilita-lhe melhor compreender
a reconfiguração da família brasileira contemporânea.
Foi com atenção e
curiosidade que a crítica e os especialistas receberam o livro de Andrea Pachá, “A vida não é Justa”. A exposição crua e sincera das experiências vivenciadas
por todos que se dedicam diariamente ao Direito de Família traz subjacente o
sentimento intrinsecamente humano de se deter em relações interpessoais e constatar,
muitas vezes, que estas relações se desfizeram na presença de “estranhos”.
Advogados, juízes, promotores e serventuários são espectadores involuntários
dos dramas pessoais que transitam aos borbotões nas “histórias de vida”
catalogadas friamente como números de processos, páginas de autos e termos de
audiências.
A possibilidade de
acompanhar, em relatos de uma juíza, os acontecimentos que construíram relações
afetivas e que desaguaram, em certo momento, no Poder Judiciário, funde as
figuras da julgadora com a da historiadora que naquele momento emergem; ambas
as perspectivas se entrelaçam para esboçar um aspecto pessoal de trajetória de
vida, de sentimentos, sonhos e realizações, mas também de rancores, mágoas,
frustrações e arrependimentos que permanecerão nas memórias de cada uma das
partes, bem como de quem lhes assiste no serviço da prestação jurisdicional. Pertinente,
então, a vinculação que se pode estabelecer com o trabalho intelectual de Carlo Ginzburg, importante historiador
italiano, que se notabilizou como um dos expoentes da corrente de análise
histórica chamada de “Micro-história”,
linha de abordagem muito bem aceita no Brasil e em várias outras partes do
mundo. Segundo esse mecanismo de estudo, a percepção da conjuntura histórica de
uma sociedade pode ser analisada a partir do conhecimento minudente dos casos
concretos, com suas idiossincrasias.
No Direito de Família
brasileiro atual, a multiplicidade de situações jurídicas e de manifestações
afetivas constituintes de arranjos familiares requer um exame percuciente de
cada experiência, para que se possa compreender, mediante a junção de todo o
caleidoscópio de realidades fáticas, o espectro da família brasileira
contemporânea, dinâmica e inclusiva. Consoante o método de Ginzburg, os detalhes, as circunstâncias, os episódios, as decisões
e escolhas pessoais de cada indivíduo compõem o que se passou a chamar de
“tipologia formal” e, a partir daí, os episódios individuais de vida transformam-se
em processo, e o processo transforma-se em história.
Com “O juiz e o Historiador”, publicado
originariamente no início da década de 1990, Carlo Ginzburg estabelece, no âmbito de investigação de famoso
processo criminal ocorrido na Itália, as intrincadas e ambíguas relações entre
o juiz e o historiador: trabalham os dois com as provas como instrumento de
pesquisa e labor. Ou seja, o método de trabalho desses profissionais se
consubstancia em indagar as implicações de elementos comuns, como provas,
depoimentos e testemunhos, a fim de compreender o contexto de vida das pessoas,
suas dimensões particulares e sociais.
O atual momento do
Direito de Família brasileiro parece estar de acordo com a órbita de estudo
acima enunciado. O que se tem observado, principalmente a partir de um detido
acompanhamento dos julgamentos dos Tribunais Superiores sobre a matéria
familiarista (e a mesma tendência se espraia pela jurisprudência de vários
Tribunais de Justiça pelo país) é a realização de justiça para o caso concreto,
levando a uma espécie de Direito de Família significativamente
jurisprudencializado. Apenas a detida leitura dos detalhes e aspectos pessoais
de cada situação que se expõe em forma de processo, autoriza compreender a
construção afetiva que ali se apresenta, para que o juiz, convertido em
historiador, logre aplicar o senso de justiça possível para aquela questão.
A complexa relação
entre o juiz e o historiador já havia sido abordada por Carlo Ginzburg em outras
obras, inclusive bem mais conhecidas do grande público, como “O queijo e os vermes” e “Os andarilhos do bem”. Para os
aplicadores do Direito de Família, decerto, essa visão da “Micro-história” é farta de possibilidades. Tradicionalmente, o
modelo judicial utilizado nos processos concernentes à área familiarista lança mão da análise das provas (depoimentos e
testemunhas, principalmente) como instrumentos para o registro da história
formal, quase diplomática, afastando indícios que possibilitem estabelecer
padrões de conduta dos grupos sociais e das mentalidades de toda uma geração.
Por certo, a mudança
lenta, mas gradual, que o Direito de Família brasileiro vem atravessando,
requer adaptação do tirocínio jurídico dos aplicadores da matéria. Não se
autoriza deixar de lado, doravante, a abordagem detalhada das características
de formação e estruturação de cada núcleo familiar. É fundamental, ainda,
perceber que cada sujeito da relação de família possui uma visão própria do
cotidiano doméstico e interpessoal, sendo esta ótica absolutamente importante
para a compreensão dos fenômenos jurídicos desafiadores que se apresentam aos
julgadores. Seria o juiz, nesse aspecto, determinante interlocutor para apreender
(e depois digerir em apropriações técnicas) as circunstâncias e
particularidades imanentes às partes, transmudadas no processo em personagens
de um drama real, exatamente como demonstrado em “A vida não é justa”, de Andréa
Pachá.
É a partir do exame
pormenorizado da subjetividade dos casos concretos que se elaboram as mudanças
jurisprudênciais impactantes, aquelas que arejam as visões mais acomodadas,
tantas vezes reproduzidas quase automaticamente em função dos números
industriais (milhares e milhares de processos) do judiciário em nosso país. Como
lembra Luigi Ferrajoli, em “Direito e razão”, o processo é um
experimento historiográfico no qual as fontes atuam “vivas”, devendo ser
encaradas não apenas como fontes em si mesmas, mas como a construção da
realidade de toda a sociedade de onde são provenientes.
A judicialização das
relações de família - fenômeno por tantas razões negativo - como busca quase
desesperada de solução para conflitos que não deveriam ser levados à frieza do
judiciário, impõe aos operadores do Direito de Família reflexão inafastável
sobre as circunstâncias atuais da nossa sociedade, as transformações dos
padrões de comportamento, a viração do próprio conteúdo ético das relações interpessoais,
o redimensionar da vivência sexual e afetiva dos casais, dentre vários pontos
de ampla importância. O olhar de Carlo
Ginzburg sobre as peculiaridades de cada caso concreto pode servir de marco
deflagratório para a reconfiguração, ao menos no âmbito judicial, do
estereótipo da família brasileira contemporânea.
Referências
bibliográficas:
Ferrajoli, Luigi. Direito e
Razão. São Paulo, RT, 2010.
Ginzburg, Carlo. El
juez y El historiador. Consideraciones a margen del proceso Sofri. Madrid: Anaya
y Mario Muchnik, 1993.
_____________.
O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um
moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
____________. Os andarilhos do
bem. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Pachá, Andrea. A vida não é
justa. São Paulo: Agir, 2013.
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