agosto 21, 2013
Entrevista publicada pela "Carta Forense" com o mestre João Baptista Villela sobre a EC nº 66/2010
05/10/2010 por João Baptista Villela
Como o senhor avalia o teor e as repercussões da
Emenda Constitucional nº 66?
A promulgação da Emenda Constitucional nº 66, de 13
de julho de 2010, desencadeou um surto de surpreendentes e desconcertantes reações.
Quem começasse por elas ? as reações ? e não tivesse ainda lido o texto da Emenda, seria levado a supor
que ela promoveu uma completa e impiedosa varredura na legislação ordinária
sobre o casamento e sua dissolução. Não que seja próprio dos textos
constitucionais revogarem legislação ordinária. Não é. De resto, revogar
não é um verbo que as constituições conjugam habitualmente. Isso pertence ao nível
da legislação infraconstitucional. Mesmo assim, a agitação levaria a pensar que
a decantada Emenda, de um modo ou de outro, teria escorraçado qualquer exigência
para o divórcio que não fosse o prévio casamento.
E de certa forma não foi isso o que fez a Emenda?
Convém, antes, entender a que vêm e o que pretendem
as constituições. As emendas constitucionais, de sua vez, integram as constituições
e passam a participar de sua natureza. E o que então pretendem as constituições?
Elas existem basicamente para organizar politicamente a Nação, definir os
poderes do Estado e fixar as franquias democráticas. Com o fim de garantir o
fluxo do processo de formação das leis e, assim, assegurar a dinâmica da vida
social, elas deixam amplos espaços para o legislador ordinário. Qualquer um sabe
que não é todo o dia que se fazem constituições. As assembléias constituintes não
são órgãos permanentes do Poder. Uma vez promulgada a Constituição, elas se
autodissolvem: A Constituição está pronta e, agora, quem faz as leis é o
legislador comum. Observando, claro, o que nela se contém. Tem-se dito, e não
está errado, que os códigos ? civil, penal, processual, etc. ? e o mais da legislação ordinária
podem tudo o que a Constituição não lhes proíbe.
Pode nos pormenorizar este raciocínio?
O raciocínio é singelo porque foi desenvolvido para
funcionar. E é tudo o que está na base do mais autorizado método de aferição da
constitucionalidade das leis: o teste da conformidade constitucional. Ou seja,
deve-se concluir que quaisquer leis estão de acordo com a Constituição, a não
ser que entre esta e aquelas se encontre um poço intransponível de
incompatibilidade. Na Alemanha, onde esta matéria tem uma longa, venerável e
exemplar tradição de práticas e estudos, chama-se a esta interpretação de verfassungskonforme
Auslegung. Isto é, interpretação constitucionalmente conforme.
Se houver um único sentido em que a lei ordinária, por esdrúxulo ou
insuspeitado que possa parecer, não se mostre incompatível com a Constituição,
tanto basta para que não seja arguida de inconstitucional. Se ao contrário, for
verfassungswidrig, isto é, hostil à Constituição, desconforme com ela, não
pode prevalecer. É inválida. A convergência mínima entre as leis ordinárias e a
Constituição não é uma invenção da pirotecnia ou do capricho de juristas e
tribunais. É, sim, um requisito de segurança da vida social. É a certeza de que
o cidadão e a iniciativa privada podem continuar buscando nas leis ordinárias a
resposta às suas perguntas prosaicas, ao invés de querer extraí-las dos textos
curtos, compactos e densos da Constituição. A Constituição, em regra, não fala
para o povo. Fala para os poderes políticos da Nação, seus destinatários por
excelência. Por isso sua linguagem é antes principiológica que pragmática.
Mas, afinal, o que foi mesmo
que disse a Emenda nº 66? Limitou-se a reescrever o § 6º do Art. 226 para dele
extrair a exigência de o casamento só poder ser dissolvido pelo divórcio "após
prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou
comprovada separação de fato por mais de dois anos". A nova redação do parágrafo,
como se vê, mantém intacta a legislação civil, que fazia e que continua a fazer
a exigência agora dispensada no plano da Constituição.
Se a legislação ordinária continua intacta, isso
significa para o senhor que nada mudou?
Absolutamente. Houve, sim, mudança radical.
O senhor poderia nos explicar melhor esta parte
para não termos margens de dúvida?
A legislação continua, sim, intacta, porque é
perfeitamente compatível com a Constituição da República e não foi modificada
segundo forma prescrita em lei. Para que seja tida por modificada impõe-se
observar os cânones da Lei de Introdução ao Código Civil. É ela que estabelece
as hipóteses de revogação. A mudança radical a que me refiro não está no conteúdo,
na extensão ou no alcance das leis, mas nos poderes de que foi investido o
legislador ordinário. Agora, não estando mais sujeito às imposições que a
Constituição lhe mandava observar, o legislador ordinário poderá, se o quiser,
também dispensá-las do Código Civil ou do Código de Processo Civil, onde elas
se acham ancoradas. Isto tem uma significação política enorme, mas não revoga
qualquer lei. Confere o poder de revogar, mas não revoga.
Mas o senhor não acha que a Emenda teve o evidente
propósito de abolir os prazos e condições da lei ordinária?
Não saberia dizê-lo. Se houve essa intenção,
legisladores e grupos de pressão eventualmente interessados agiram com imperdoável
amadorismo. Poderiam ter encaminhado, simultaneamente com a reforma da
Constituição, projeto de lei ordinária que reformasse os dispositivos do Código
Civil e do Código de Processo Civil que estabelecem os prazos e condições
supostamente indesejáveis. Suprimidos no nível constitucional, poderia o
legislador ordinário, ato contínuo, também suprimi-los dentro de seu âmbito de
determinação. Por outro lado, não é de se excluir que os Deputados e Senadores
que aprovaram a Emenda tenham querido assegurar um tempo de reflexão para que
se possa melhor decidir entre conservar ou extinguir as exigências. Toda a matéria
de família e casamento é muito delicada e sensível para que grandes mudanças se
façam a golpes de foice.
O senhor está querendo dizer que as exigências do Código
Civil e do Código de Processo Civil foram recepcionadas pela Emenda?
Quase isso. O verbo recepcionar é, em geral,
empregado quando a lei ordinária é anterior à Constituição ou emenda
constitucional. A lei ordinária "estava lá", veio a Constituição, que não se
mostrou contrária a lei. Então dizemos que a Constituição a "recepcionou", isto
é, deu-lhe uma espécie de bênção. E ela então, lei ordinária ou complementar,
poderá continuar vigorando. No caso concreto, a Emenda incidiu sobre matéria já
legislada no nível ordinário, mas preservou o que nela se continha. Não inovou.
Portanto, nos efeitos práticos, é como se a tivesse recepcionado. Dizer que a
Emenda "recepcionou" as exigências do Código Civil e do Código de Processo
Civil soa, aqui, algo artificial. Mais adequado seria dizer que as "preservou".
Esta circunstância histórica, de resto, só reforça a hipótese de que a Emenda não
quis mesmo modificar os Códigos. Se o quisesse, não havia melhor oportunidade.
O legislador da Emenda estava, por assim dizer, "com a faca e o queijo na mão".
Como o senhor explica a geral mobilização de juízes,
promotores, advogados e notários em torno da questão, a maioria entendendo que
as exigências da lei ordinária se acham totalmente suprimidas?
Esta pergunta envolve uma boa dose de dificuldade.
Penso que as causas são muitas e têm a ver com a crise geral por que passa a
teoria e a prática do Direito no Brasil. A partir da justa e necessária reverência
que se presta à Constituição, como lei suprema do País, desenvolveu-se também,
sob a forma de perversão da reverência, um culto fetichista e demiúrgico
por aquilo que diz a Constituição. Dá-se-lhe uma intenção que ela não tem, não
deve ter, nem quer ter na opinião de seus melhores intérpretes. Por ser
poderosa, não quer dizer que haja de intervir no varejo da vida, suprimindo as
instâncias intermediárias de produção das leis. Se a Constituição deve, por
assim dizer, engolir o código civil, acabará, ela própria, ao fim e ao
cabo, por se tornar "o" Código Civil. Como, por sua vez, um código civil deve
orientar-se por uma boa constituição, paradoxalmente teremos de elaborar outra
constituição, que seja apenas constituição e não código civil.
O senhor não acha que as propostas do direito civil
constitucional dispensariam a intermediação da legislação ordinária, quando se
trate de implementar valores para promover a dignidade da pessoa humana? Neste
sentido não lhe parece que requisitos como separação prévia, tempo de duração
do casamento e outros que limitem a autonomia individual devam ser entendidos
como pura e simplesmente expurgados da ordem jurídica brasileira?
Quando valores novos que, por natureza, devam ser
processados no direito civil ganham primeiro o tecido constitucional,
justifica-se que sejam aplicados diretamente até que sejam incorporados à
legislação ordinária. Foi o caso, por exemplo, dos direitos da privacidade, da
intimidade, da recusa ao tratamento médico e outros similares, que começaram
pela Constituição e só depois chegaram ao Código Civil. É uma situação
absolutamente transitória e denota, possivelmente, o único sentido em que a
expressão direito civil constitucional merece curso, apesar da manifesta
impropriedade dos termos. No caso do casamento e do divórcio, não há porque
recorrer a essa via. São velhos institutos do direito civil e só aparecem nas
constituições quando estas querem fixar alguma orientação básica que devam
seguir.
Qual seu posicionamento acerca da aplicação de um
direito civil constitucional de caráter permanente, isto é, um direito civil
constitucional que introduza um novo sentido sobre os velhos institutos e os
submeta a um processo constante de depuração?
Devo dizer que, afora o sentido a que me referi de
uma técnica provisória de aplicação de normas, não alcanço o que se possa
pretender com o tal de direito civil constitucional, uma expressão que
tem tudo para merecer o selo de contraditória, esdrúxula e obscura. Não sei em
que consiste seu objeto e nem a que se propõe este suposto refinado produto da
genialidade jurídica. O que posso dizer é que, em sistema organizado sob o
primado da constituição, todo o direito ou é constitucional ou não tem
validade. Dito com mais precisão, tem de ser constitucionalmente conforme.
Deve obediência à Constituição. Seu conteúdo não pode estar em desacordo com a
Constituição. Ou bem convive com ela ou padece de ilegitimidade. Isso que estou
dizendo do direito civil, vale não só para o direito civil, como para o direito
penal, o direito processual, o direito tributário, o direito do consumidor ou
qualquer outro corpo de regras jurídicas. Portanto, direito civil
constitucional é, no mínimo, redundante. Poderia conceber-se um direito
civil que não fosse constitucional?
Mas, se a Emenda Constitucional aboliu os
requisitos que se continham na Constituição, não significa isso que a ordem jurídica
brasileira os repudia? Como é possível o senhor afirmar que eles continuam
presentes na legislação? Pode alguma coisa que foi, digamos, expulsa da
Constituição, continuar se refugiando na legislação infraconstitucional?
Vamos por partes. A Emenda Constitucional não
declarou seu repúdio aos requisitos que constavam do § 6º do Art. 226. Não os
proscreveu do direito brasileiro. Onde está escrito que ela o tenha feito?
Apenas os dispensou (na medida em que não os repetiu), o que algo bem
diferente. Uma vez que apenas os dispensou, o legislador ordinário fica livre
para conservá-los ou não. E se os conservar hoje, poderá mandá-los para o lixo
amanhã. Voltar a adotá-los em futuro próximo ou remoto. E assim por diante.
Tudo segundo seu próprio, livre e amplo juízo de conveniência.
A Constituição pode impor
certos limites ou deixá-los à discrição de quem fará as leis ordinárias. Dou um
exemplo. A pena de morte ou a tortura são práticas que a Constituição não
tolera. E porque não as tolera, deixa-o clara e peremptoriamente afirmado em
suas disposições (Art. 5º, III e XLVII, b). Isto significa que o
legislador ordinário não dispõe de qualquer liberdade para instituí-las. É que,
no caso, estão envolvidos valores de tal relevância e magnitude, que a
Constituição achou por bem não correr o risco de que algum dia o legislador
comum, movido quem sabe por um forte clamor público, viesse a querer implantar
a tortura ou a prisão perpétua. É apenas um exemplo. Muitos outros poderiam ser
lembrados. São inúmeras e variadas as hipóteses em que a Constituição intervém
para não deixar espaços de arbítrio ao legislador comum, ou claros onde ele
pudesse operar: liberdade de convicção e credo, férias anuais remuneradas,
competência dos tribunais, etc. Não há aqui, entretanto, melhor exemplo, que o
próprio divórcio. Ele está assegurado na Constituição. Se o Código Civil
resolvesse suprimi-lo, estaria ultrapassando os próprios limites de competência.
Assim, a supressão não poderia prevalecer. Mas, afora esses marcos basilares,
quem faz as escolhas, boas ou más, é o legislador ordinário. Os requisitos para
o divórcio não foram excluídos da ordem jurídica brasileira. Pode ser que
venham a ser. Ou não. Quem poderá dizê-lo? Até o momento, só foram removidos do
espaço constitucional. Continuam ? não refugiados ? mas sobrevivos em estado de
absoluta saúde e normalidade no Código Civil e no Código de Processo Civil.
Como deveria ter procedido a Emenda, caso não
desejasse mais que os requisitos que estavam no § 6º do Art. 226 continuassem a
vigorar na ordem jurídica brasileira? Caso os considerasse, por exemplo, de
todo inconvenientes?
Muito fácil: Deveria simplesmente expressar sua
intenção. Poderia ter adotado, por exemplo, a seguinte redação: "O casamento
civil pode ser dissolvido pelo divórcio, independentemente de qualquer
requisito". Pronto. Ao dizer "independentemente de qualquer requisito", o
legislador da Emenda estaria mandando um claro recado para o legislador ordinário:
"Não faça exigências e considere automaticamente eliminadas as que se
contiverem na sua legislação". Mais simples, impossível. Não foi, entretanto, o
que fez. Nem por essas palavras nem por outras equivalentes. Se não disse
quando poderia dizer, devemos ater-nos só ao que está nas suas palavras. Assim
determina a boa lógica e assim quer o estado de direito, que tem horror ao arbítrio
e guarda visceral desconfiança em relação à fantasia.
Em síntese, o senhor não vê incompatibilidade entre
o teor da Emenda Constitucional nº 66, de um lado, e as exigências para o divórcio
no Código Civil e no Código de Processo Civil, de outro?
Absolutamente nenhuma. Elas convivem perfeitamente
e se dão muito bem uma com as outras.
Fonte: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/entrevistas/emenda-constitucional-n%C2%BA-66---outras-impressoes/6075
AUTHOR:
Dimitre Soares
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