novembro 19, 2012
IBDFAM apresenta a interessante questão do Direito de Família nas comunidades indígenas
Este ano, uma série de conflitos envolvendo indígenas e fazendeiros
chamaram a atenção da imprensa para a difícil situação dos povos
indígenas no Mato Grosso do Sul. A dimensão dos problemas sensibilizou a
sociedade que se manifestou principalmente por meio das redes sociais.
Para comentar a questão indígena no Mato Grosso do Sul e a aplicação do
Direito de Família nas comunidades indígenas da região, convidamos o
Juiz da Primeira Vara de Família de Campo Grande e diretor do IBDFAM,
David de Oliveira Gomes Filho. Confira a entrevista:
A recente exposição na mídia da situação dos povos
indígenas no Mato Grosso do Sul incita reflexões sobre o modo de vida
das comunidades indígenas do País. No âmbito da família, quais as
principais contendas nas aldeias indígenas dessa região?
De fato, estas notícias nos fazem refletir sobre a vida destes
povos, especialmente quando se noticia a possibilidade de suicídio
coletivo. É preciso dizer, entretanto, que não está na cultura dos
indígenas o suicídio por causas políticas. Isto está mais para os homens
bomba do oriente médio.
Os casos de suicídio de jovens indígenas está relacionado às crises
existenciais e à desesperança. Eles são humanos como nós, eles
raciocinam e percebem a diferença social entre os índios e os demais
brasileiros. Eles vivem um desajuste social e experimentam um desajuste
consigo mesmos.
Eu não diria que o problema esteja exclusivamente na demarcação de
terras, mas na falta de uma política social que permita aos indígenas se
desenvolverem conforme a opção de cada um. Nem todos querem terra, mas
todos querem respeito e dignidade.
É um erro querer impedir o avanço de uma civilização, inclusive no
aspecto cultural. A visão romanceada que muitos têm dos indígenas, a
manutenção forçada de suas culturas, ao contrário do que muitos pensam,
não os favorecem.
Estes povos são mantidos culturalmente no século XV, enquanto o
resto do mundo vive as facilidades do século XXI. Se os alemães, os
ucranianos, os africanos, os japoneses, os italianos, os portugueses
podem experimentar o mundo moderno, sem largar seus traços culturais,
por que os indígenas devem ser excluídos deste mundo em nome dos seus
traços culturais?
O envolvimento cultural da sociedade moderna na sociedade indígena
anda a passos lentos, quase sempre através da religiosidade. O Estado
tem presença precária nestas comunidades.
Em algumas etnias, existe uma influência muito grande das igrejas
evangélicas. O povo Terena, por exemplo, valoriza a oratória, se encanta
com "o saber falar" e tem uma identidade muito forte com as cidades.
São pessoas que desejam vir às cidades, estudar, formar-se, passar num
concurso público. O povo Kaiowá, por sua vez, prestigia muito seus
feiticeiros, possui um rigor cultural elevado que dificulta o ingresso
da influência da igreja e, na maioria, não gosta da cidade.
De regra, as contendas ocorridas nas aldeias acabam sendo
resolvidas nas próprias aldeias pelos costumes de cada etnia e eles
trazem ao Poder Judiciário apenas os casos de extrema violência não
acomodados pelas suas lideranças, pedidos de registro tardio,
previdenciário ou litígios possessórios com não-índios.
Quando se percebe a presença de indígenas em demandas de família,
são pessoas integradas à sociedade, com vida e profissão de qualquer
brasileiro normal.
Sabe-se que os indígenas têm estatuto próprio. Nesse
sentido, como o senhor avalia a aplicação do Direito de Família atual
nas comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul?
Esta aplicação é precária, quando não é inexistente. Inicialmente,
deve ser dito que os indígenas se reúnem em vários grupos étnicos, com
histórias diferentes, culturas diferentes, com línguas diferentes, com
uma diversidade de comportamentos enorme. A etnia Terena e a Kaiowá, por
exemplo, são tão diferentes culturalmente entre si quanto os chineses
são dos gregos. Não é correto nos referirmos aos indígenas como se
fossem um só povo ou uma só cultura. Em Mato Grosso do Sul, temos, salvo
engano, dez povos diferentes.
No geral, o que há de uniforme entre eles, é que seguem rigidamente
regras próprias, que não reconhecem a autoridade das leis brasileiras e
que a noção de família é diferente.
Nós criamos a noção de família na nossa cultura, sob influência
judaico-cristã. Para eles, a noção é mais relacionada com os laços de
parentesco e, em cada comunidade, existe uma forma própria de resolver
suas questões.
Para que exista divórcio, por exemplo, é necessário que exista um
casamento e a noção de casamento que conhecemos em nossa sociedade é a
que vem da noção religiosa que sempre nos influenciou, a "sagrada
família cristã". É a visão do casamento para a vida toda, da fidelidade
conjugal como algo inflexível.
Os Kaiowás, se não me engano, aceitam a poligamia. Na verdade,
existe uma espécie de dote para aquele que toma uma mulher para si. Os
cunhados trabalham para o marido da sua irmã. Assim, quanto mais
mulheres você tem, mais cunhados você consegue para trabalhar para
você.
O casamento, por sua vez, é circunstancial, não é para sempre. Ele
não chega a ser uma instituição daquelas culturas. Quando o amor acaba,
separam sem maiores traumas e o marido muitas vezes fica com a cunhada
ou com outra mulher. As crianças costumam ficar com mãe e estas mulheres
arrumam outros maridos. Os homens, contudo, nem sempre aceitam os
filhos do outro, quando são do sexo masculino. No
geral, eles valorizam os laços de parentesco, são autônomos, não
reconhecem a autoridade do Estado e costumam ser menos preconceituosos
com a infidelidade.
As sociedades costumam ser patriarcais e as mulheres extremamente submissas.
No dia 19 de abril de 2012 foi instituída a resolução
conjunta nº. 3 do Conselho Nacional de Justiça, e do Conselho Nacional
do Ministério Público. Esta resolução regulamenta o registro civil dos
índios. Sendo facultativo, em que beneficia o índio que optar pelo
registro?
Até pouco tempo atrás, a realidade registral dos indígenas era de
muita dificuldade pelo desconhecimento da lei e pelo consequente medo de
alguns cartorários antigos em proceder ao registro de nascimento.
Os indígenas, por sua vez, apenas procuram regularizar seus
registros civis quando necessitam de algum documento. Fazem isto quando
querem votar, ou quando querem pedir algum benefício previdenciário, ou
quando decidem estudar ou trabalhar nas cidades. É neste momento que
eles procuram os cartórios para fazerem seus registros de nascimento e
muitos cartórios tinham por costume encaminhá-los à Justiça Estadual
para propor uma ação de registro tardio, ignorando totalmente o estatuto
do índio (Lei n. 6.001/73).
Quando assumi a comarca de Bonito, MS, percebi a enormidade de
processos desta natureza e, em audiências com os indígenas, identifiquei
suas dificuldades, verdadeiras misérias. Imediatamente fiz uma ordem de
serviço (002/2007/PJ/Bonito/MS) basicamente repetindo o que diz a lei
sobre o registro de indígena e orientando o Cartório da região para
efetuar os registros.
A Corregedoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul tomou
conhecimento do ato e, depois de alguns estudos, emitiu um provimento a
respeito (Provimento n. 18/2009) abrangendo a orientação de se facilitar
o registro de indígenas para todo o Estado.
Posteriormente, o CNJ emitiu a resolução conjunta n. 3, que deu
projeção nacional ao ato.Graças a esses atos, os respectivos cartórios
de registro civil estão mais seguros em efetuar os registros de
nascimento e quem ganha são os indígenas, que não precisam enfrentar a
morosidade e toda a ritualística de um processo judicial para conseguir
seu documento.
Na sua opinião, o que deve ser feito para que o Direito de
Família, principalmente a legislação que ampara as mulheres (Lei Maria
da Penha), as crianças e adolescentes (ECA), chegue às comunidades
indígenas, sem ferir os costumes deles?
Pelos motivos expostos, é difícil conciliar estes dois mundos, sem
traumas culturais. Veja que existem relatos de costumes em algumas
etnias, que para a nossa cultura são bizarros, mas que alguns deles
praticam com naturalidade. Meninas que passaram pela menarca, por
exemplo, são consideradas aptas para o sexo e ele ocorre, às vezes, à
força. Se existe algum desconforto pelo pai da "vítima", o cacique é
chamado e ele soluciona o conflito. Há comentários de casos de
infanticídio de crianças deformadas e de bebês gêmeos, neste último
caso, por considerá-los de mau agouro, no entanto eu não saberia dizer
se é algo que ainda aconteça nos dias de hoje ou se é algo de algumas
poucas décadas passadas.
A imposição dos costumes da nossa sociedade ao da sociedade deles
importaria na deformação daqueles costumes e, num cenário pacifista,
exigiria a colaboração dos próprios indígenas, pois suas aldeias
costumam estar fechadas para estranhos, especialmente para o
policiamento e para o Conselho Tutelar. Qualquer coisa que se tente
fazer lá passa pelo filtro da Funai.
Hoje, na prática, quando as situações são consideradas graves para
os próprios índios, são eles quem permitem que a notícia chegue até a
Justiça. Quando eles entendem que não é, ninguém fica sabendo.
Fonte: IBDFAM
AUTHOR:
Dimitre Soares
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