agosto 15, 2010
Ouviram do Ipiranga (Pasquale Cipro Neto)
Há algum tempo, o ex-jogador de futebol Sócrates disse que a maior emoção que a carreira lhe proporcionou ocorreu na Copa do Mundo de 1982, mais precisamente durante a execução do Hino Nacional antes da primeira partida do Brasil naquela disputa. “A idéia de representar toda a nação brasileira me deixou emocionado”, disse a Marília Gabriela o memorável doutor Sócrates, que capitaneava aquela Seleção e disputava seu primeiro Mundial.
A maioria dos “boleiros” brasileiros tem água de batata na cabeça; Sócrates, no entanto, é lúcido, inteligente, corajoso, culto. E tem percepção política aguda, acutíssima. Que isso tem que ver com o episódio do Hino? A nefanda ditadura militar fez que tivéssemos (os que, de uma forma ou de outra, lutamos contra ela) uma relação complicada com o Hino. Era inevitável que ele nos soasse como propaganda nazifascista, já que os vendilhões da pátria nos enfiavam goela abaixo o “Ouviram do Ipiranga...” para “legitimar” todas as barbaridades que perpetravam contra a Nação.
Irônica e paradoxalmente, usávamos o Hino como escudo, já que acreditávamos numa lenda da época, segundo a qual ninguém podia ser preso ou apanhar da polícia se estivesse cantando o Hino Nacional. Cantávamo-lo. E apanhávamos. E éramos presos.
Um dos dias mais imbecis e lúgubres de minha vida foi o do juramento à bandeira. Em pleno estádio do Pacaembu, onde desfilaram sua arte Pelé, Roberto Dias, Ademir da Guia e o próprio Sócrates, entre outros deuses da bola, um milico de alta patente proferia as besteiras típicas do discurso da época, e milicos de baixa patente distribuíam cacetadas nos juradores que praticávamos o crime de bocejar, porque ouvíamos o que ouvíamos e porque estávamos lá havia muitas horas. O Hino, é claro, engalanou a “festa”.
Quando ouvi a declaração de Sócrates, vieram-me à mente vários desses tristes episódios. É claro que não cometi o despautério doentio de ficar decepcionado com o “Doutor” ou de julgá-lo alienado, o que muitos xiitas devem ter feito. O hino, afinal, é uma das carteiras de identidade de um povo, é um de seus símbolos. Conquanto não morra de amores por símbolos, muito menos pela tosca idéia de patriotismo que ainda grassa no Brasil (prefiro o que diz Vinicius em seu antológico poema “Pátria Minha”), entendo o que sentiu Sócrates. Entendo porque também me emociono quando, em certos momentos de nossa história, o povo se põe a cantar o Hino. É um grito pela busca de uma pátria que, na verdade, não temos ou não é nossa (“Por que te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho pátria...”, diz o texto de Vinicius).
A idéia de trocar duas palavras sobre o Hino Nacional Brasileiro surgiu da quase promessa presente nas últimas linhas do texto anterior, em que comentei a ordem das palavras e das orações como elemento que pode comprometer a compreensão dos enunciados. Vamos, pois, à parte suja da nossa conversa. De início, é preciso deixar claro que não há acento grave no “as” de “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...”. Por dois motivos: porque não há mesmo (assim está na lei que torna oficial a letra do Hino) e porque com ele o agente de “ouviram” seria indeterminado, interpretação que perde força quando se analisa o contexto. Posta na ordem direta, a primeira oração da letra oficial do Hino se transforma em “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico”. Sim, foram elas, margens, que, metagogicamente (sim, metagogicamente), ouviram o brado retumbante de um povo heróico. A metagoge é um dos nomes que se dão à atribuição de características humanas ao que não é humano. Os outros nomes são “prosopopéia” e “personificação”.
Sobre essa questão, convém citar o que ocorre em uma das versões eletrônicas do “Aurélio”, anterior à lançada em 1999 (“Novo Aurélio Século XXI”). O dicionário dá justamente a primeira oração do Hino Nacional como exemplo de “anástrofe”, figura de sintaxe que define como “inversão, mais ou menos forte, da ordem natural das palavras ou das orações”. Nessa versão, o bendito “as” aparece no exemplo com acento grave, mas a alegria dos que insistem em achar que esse “as” tem mesmo o sinal diacrítico acaba em seguida, quando o próprio dicionário se encarrega de reescrever o trecho na ordem direta: “As margens plácidas do Ipiranga ouviram...”.
Ora, se o “as” tivesse acento grave, a expressão “às margens plácidas do Ipiranga” não iniciaria a ordem direta; encerrá-la-ia (“Ouviram o brado retumbante de um povo heróico às margens plácidas do Ipiranga”). No verbete “anástrofe” do “Novo Aurélio Século XXI” (versão de papel), o exemplo é o mesmo, mas o descompasso foi eliminado. O “as” aparece sem acento, na ordem indireta e na direta.
A letra do Hino Nacional é repleta de inversões. Desmontar as orações e reconstruí-las pode ser um belo exercício de sintaxe e de compreensão desse tipo de texto. E é bom tomar cuidado com o vocabulário, para não achar, por exemplo, que “garrida” tenha algo que ver com “garra”. A garra, guardemo-la para concretizar este trecho do Hino, em que, por sinal, também existe inversão: “Dos filhos deste solo és mãe gentil”. A pátria não tem sido mãe gentil de significativa parcela dos filhos de seu solo.
Pasquale Cipro Neto
(http://www.tosabendomais.com.br/portal/penso-logo-escrevo.php?pagina=Materia&idMateria=7&acao=Ver)
A maioria dos “boleiros” brasileiros tem água de batata na cabeça; Sócrates, no entanto, é lúcido, inteligente, corajoso, culto. E tem percepção política aguda, acutíssima. Que isso tem que ver com o episódio do Hino? A nefanda ditadura militar fez que tivéssemos (os que, de uma forma ou de outra, lutamos contra ela) uma relação complicada com o Hino. Era inevitável que ele nos soasse como propaganda nazifascista, já que os vendilhões da pátria nos enfiavam goela abaixo o “Ouviram do Ipiranga...” para “legitimar” todas as barbaridades que perpetravam contra a Nação.
Irônica e paradoxalmente, usávamos o Hino como escudo, já que acreditávamos numa lenda da época, segundo a qual ninguém podia ser preso ou apanhar da polícia se estivesse cantando o Hino Nacional. Cantávamo-lo. E apanhávamos. E éramos presos.
Um dos dias mais imbecis e lúgubres de minha vida foi o do juramento à bandeira. Em pleno estádio do Pacaembu, onde desfilaram sua arte Pelé, Roberto Dias, Ademir da Guia e o próprio Sócrates, entre outros deuses da bola, um milico de alta patente proferia as besteiras típicas do discurso da época, e milicos de baixa patente distribuíam cacetadas nos juradores que praticávamos o crime de bocejar, porque ouvíamos o que ouvíamos e porque estávamos lá havia muitas horas. O Hino, é claro, engalanou a “festa”.
Quando ouvi a declaração de Sócrates, vieram-me à mente vários desses tristes episódios. É claro que não cometi o despautério doentio de ficar decepcionado com o “Doutor” ou de julgá-lo alienado, o que muitos xiitas devem ter feito. O hino, afinal, é uma das carteiras de identidade de um povo, é um de seus símbolos. Conquanto não morra de amores por símbolos, muito menos pela tosca idéia de patriotismo que ainda grassa no Brasil (prefiro o que diz Vinicius em seu antológico poema “Pátria Minha”), entendo o que sentiu Sócrates. Entendo porque também me emociono quando, em certos momentos de nossa história, o povo se põe a cantar o Hino. É um grito pela busca de uma pátria que, na verdade, não temos ou não é nossa (“Por que te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho pátria...”, diz o texto de Vinicius).
A idéia de trocar duas palavras sobre o Hino Nacional Brasileiro surgiu da quase promessa presente nas últimas linhas do texto anterior, em que comentei a ordem das palavras e das orações como elemento que pode comprometer a compreensão dos enunciados. Vamos, pois, à parte suja da nossa conversa. De início, é preciso deixar claro que não há acento grave no “as” de “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...”. Por dois motivos: porque não há mesmo (assim está na lei que torna oficial a letra do Hino) e porque com ele o agente de “ouviram” seria indeterminado, interpretação que perde força quando se analisa o contexto. Posta na ordem direta, a primeira oração da letra oficial do Hino se transforma em “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico”. Sim, foram elas, margens, que, metagogicamente (sim, metagogicamente), ouviram o brado retumbante de um povo heróico. A metagoge é um dos nomes que se dão à atribuição de características humanas ao que não é humano. Os outros nomes são “prosopopéia” e “personificação”.
Sobre essa questão, convém citar o que ocorre em uma das versões eletrônicas do “Aurélio”, anterior à lançada em 1999 (“Novo Aurélio Século XXI”). O dicionário dá justamente a primeira oração do Hino Nacional como exemplo de “anástrofe”, figura de sintaxe que define como “inversão, mais ou menos forte, da ordem natural das palavras ou das orações”. Nessa versão, o bendito “as” aparece no exemplo com acento grave, mas a alegria dos que insistem em achar que esse “as” tem mesmo o sinal diacrítico acaba em seguida, quando o próprio dicionário se encarrega de reescrever o trecho na ordem direta: “As margens plácidas do Ipiranga ouviram...”.
Ora, se o “as” tivesse acento grave, a expressão “às margens plácidas do Ipiranga” não iniciaria a ordem direta; encerrá-la-ia (“Ouviram o brado retumbante de um povo heróico às margens plácidas do Ipiranga”). No verbete “anástrofe” do “Novo Aurélio Século XXI” (versão de papel), o exemplo é o mesmo, mas o descompasso foi eliminado. O “as” aparece sem acento, na ordem indireta e na direta.
A letra do Hino Nacional é repleta de inversões. Desmontar as orações e reconstruí-las pode ser um belo exercício de sintaxe e de compreensão desse tipo de texto. E é bom tomar cuidado com o vocabulário, para não achar, por exemplo, que “garrida” tenha algo que ver com “garra”. A garra, guardemo-la para concretizar este trecho do Hino, em que, por sinal, também existe inversão: “Dos filhos deste solo és mãe gentil”. A pátria não tem sido mãe gentil de significativa parcela dos filhos de seu solo.
Pasquale Cipro Neto
(http://www.tosabendomais.com.br/portal/penso-logo-escrevo.php?pagina=Materia&idMateria=7&acao=Ver)
AUTHOR:
Dimitre Soares
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