março 21, 2016

A família entre autonomia existencial e tutela de vulnerabilidades

Por Gustavo Tepedino.

A evolução do tratamento jurídico das famílias revela movimento pendular entre dois valores caros ao atual sistema jurídico. Em primeiro lugar, a necessidade de se assegurar a liberdade nas escolhas existenciais que, na intimidade do recesso familiar, possa propiciar o desenvolvimento pleno da personalidade de seus integrantes. Esse o propósito do artigo 1.513 do Código Civil: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”. Por outro lado, a tutela das vulnerabilidades e das assimetrias econômicas e informativas, para que a comunhão plena de vida se estabeleça em ambiente de igualdade de direitos e deveres (artigo 1.511, Código Civil, ex vi do artigo 226, § 5º, da Constituição), com o efetivo respeito da liberdade individual. Tendo-se presentes esses dois vetores, e diante das intensas modifica­ções ocorridas nas últimas décadas na estrutura das entidades familiares, torna-se indispensável a reformulação dos critérios interpretativos, a despeito da resiliência, de alguns setores da doutrina e da magistratura, de admitir a incompatibilidade entre antigos dogmas de cunho religioso e político com tão radicais transformações — fenomenológica, percebida na sociedade ocidental, e axiológica, promovida pela legalidade constitucional.
A Constituição da República consagrou nova tábua de valores, da qual se pode extrair a transformação do conceito de unidade familiar que sempre esteve na base do sistema. Verifica-se, do exame dos artigos 226 a 230, da Constituição, que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as rela­ções familiares dele (mas não unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus integrantes e ao desenvolvimento da personalidade dos filhos. De outra forma não se consegue explicar a proteção constitucional às entidades familiares não fundadas no casamento (artigo 226, § 3º) e às famílias monoparentais (artigo 226, § 4º); a igualdade de direitos entre homem e mulher na sociedade conjugal (artigo 226, § 5º); a garantia da possibilidade de dissolução da sociedade conjugal independentemente de culpa (artigo 226, § 6º); o planejamento familiar voltado para os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (artigo 226, § 7º) e a previsão de ostensiva intervenção estatal no núcleo familiar no sentido de proteger seus integrantes e coibir a violência doméstica (artigo 226, § 8º).
A hostilidade do legislador pré-constitucional às interferências exógenas na estrutura familiar e a escancarada proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família, ainda que em detrimento da realização pessoal de seus integrantes — particularmente no que se refere à mulher e aos filhos, inteiramente subjugados à figura do marido — justificava-se em benefício da paz doméstica. Por maioria de razão, a proteção dos filhos extraconjugais nunca poderia afetar a estrutura familiar, sendo compreensível, em tal perspectiva, a aversão do Código Civil de 1916 aos relacionamentos extraconjugais, simbolizados pelo estigma da concubina. O sacrifício individual, em todas as hipóteses de fracasso no relacionamento conjugal, era largamente compensado, na ótica do sistema, pela preservação da célulamater da sociedade, instituição essencial à ordem pública e modelada sob o paradigma patriarcal.
O constituinte de 1988, todavia, além dos dispositivos acima enunciados, consagrou, no artigo 1º, III, entre os princípios fundamentais da República, que antecedem todo o texto maior, a dignidade da pessoa humana, impedindo assim que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de institui­ções com status constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família. Assim sendo, a família deixa de ter valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na medida em que — e somente na exata medida em que — se constitua em um núcleo intermediário de autonomia existencial e de desenvolvimento da personalidade dos filhos, com a promoção isonômica e democrática da dignidade de seus integrantes.
Dito diversamente, altera-se o conceito de unidade familiar, antes delineado como aglutinação formal de pais e filhos legítimos baseada no casamento, para o conceito flexível e instrumental, que tem em mira o liame substancial de pelo menos um dos genitores com seus filhos — tendo por origem não apenas o casamento — e inteiramente voltado para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros. Nesse cenário há de se refletir sobre a conquista representada pela prevalência no direito da realidade fática da família como comunidade de pessoas de carne e osso sobre a família no modelo formal e institucional de reprodução sexual e acumulação econômica em torno da autoridade patriarcal. O afeto torna-se, nessa medida, elemento definidor de situações jurídicas, ampliando-se a relação de filiação pela posse de estado de filho e flexibilizando-se, com benfazeja elasticidade, os requisitos para a constituição da família. O direito de família passa a atribuir particular importância (não à afetividade como declaração subjetiva ou obscura reserva mental de sentimentos não demonstrados, mas) à percepção do sentimento do afeto na vida familiar e na alteridade estabelecida no seio da vida comunitária. Realidade e percepção da realidade se tornam para o direito de família indispensáveis para a superação de paradigmas formalistas e patrimonialistas. Nessa esteira, situa-se a ampla admissibilidade, pela jurisprudência atual, de entidades familiares extraconjugais, incluindo-se a união de pessoas do mesmo sexo (STF, ADPF 132/RJ e ADI 4277/DF, rel. min. Ayres Britto, j. 5/5/2011), as famílias simultâneas, cuja repercussão geral foi reconhecida pela Suprema Corte (STF, RG no ARE 656.298/SE, Rel. Min. Ayres Britto, julg. 8.3.2012), além das uniões poliafetivas, reguladas hodiernamente pelo tabelionato (recentemente, lavrou-se escritura pública no 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro para contratualizar união homoafetiva entre três mulheres), e cuja eficácia, no âmbito do direito de família, ainda é objeto de controvérsia, justamente porque o conceito de família há de ser necessariamente elástico, em contínua evolução.
Entretanto, há de se cuidar, com zelo de ourives, para que não se banalizem os sentimentos e o afeto, submetidos à percepção valorativa de cada magistrado ou, pior, às pretensões egoístas e patrimonialistas de protagonistas de conflitos de interesses. E o melhor antídoto para tais riscos mostra-se o balizamento do merecimento de tutela das relações afetivas pelos valores normativos constitucionais (democracia, igualdade, solidariedade, dignidade) que permeiam o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Civil e toda a legislação infraconstitucional.
   No cenário da vida como ela é, o amor por vezes falta, o egoísmo aflora e os deveres estabelecidos nas relações afetivas devem ser integralmente preservados. A alteridade tem consequências para o constituinte. É como se a legalidade constitucional se valesse da percepção do afeto para imediatamente impregná-la e plasmá-la com os valores constitucionais, vinculando as relações jurídicas a deveres de solidariedade e igualdade. Torna-se indispensável, portanto, uma vez introduzida a realidade da vida, do amor e do afeto na experiência normativa, que não se releguem as relações de família à pura espontaneidade, desprovida de valores jurídicos, deixando-se em segundo plano os deveres constitucionais a que corresponde o amor responsável. Autonomia total para os arranjos familiares, sendo a responsabilidade pelo outro e por tudo aquilo que se cativa imprescindíveis na legalidade constitucional.

Disponível em: www. conjur.com.br

março 16, 2016

Registro de filhos gerados a partir de reprodução assistida será automático em todo o País

Estimados leitores, por meio de Provimento (Provimento nº. 52 , de 14 de março de 2016), o Conselho Nacional de Justiça - CNJ, como já vinha fazendo, usupor atribuições do Poder Legislativo brasileiro, e "criou lei". A Ministra Nancy Andriguy, nesse ponto, superou todos os limites do aceitável, e se auto outorgou o poder de criar norma, que pela Constituição Federal, deveria, sempre, emanar do povo. 
Através do provimento, a Ministra regulamentou o registro civil de filhos havidos por reprodução assistida, sendo eles oriundos de relação homoafetiva ou heretossexual.

Importa lembra que a matéria foi discutida - e rejeitada - na reunião do final do ano passado do Conselho da Justiça Federal - CJF.

Agindo assim, o CNJ, mais uma vez, passar por cima do Poder Legislativo, e afasta a discussão com a sociedade antes da matéria virar lei.

Segue, abaixo, a informação do IBDFAM sobre o tema.

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O registro de nascimento dos filhos de casais heterossexuais e homoafetivos nascidos por meio de técnicas de reprodução assistida, como fertilização in vitro e gestação por substituição (ou “barriga de aluguel”), será feito sem necessidade de autorização judicial a partir desta terça-­feira, 15, em todo o território nacional. A iniciativa é da Corregedoria Nacional de Justiça, que publicou o Provimento nº 52, de 14 de março de 2016.

Uma das inovações é que não constará no registro civil da criança o nome da gestante nos casos de gestação por substituição, como informado na declaração de nascido vivo (DNV). O conhecimento da ascendência biológica não importará no reconhecimento de vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador ou doadora e o ser gerado por meio da reprodução assistida. Aos filhos de casais homoafetivos, o registro será adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem haver qualquer distinção quanto à ascendência materna ou paterna.

Segundo a ministra Nancy Andrighi, corregedora nacional de Justiça, a medida dá proteção legal a uma parcela da população que não tinha assegurado o direito mais básico de um cidadão, que é a certidão de nascimento. De acordo com o Provimento, se os pais forem casados ou viverem em união estável, basta que um deles vá ao Cartório fazer o registro munido com os documentos exigidos (veja a lista aqui). Quando a reprodução assistida for realizada após a morte de um dos doadores, deverá ser apresentado, ainda, termo de autorização prévia específica do falecido ou da falecida para o uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público.

A oficial do Cartório de Registro Civil e Notas do Barreiro, em Belo Horizonte (MG), Letícia Franco Maculan Assumpção, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), esclarece que os oficiais de registro civil eram obrigados a seguir a declaração de nascido vivo, “ou seja, tínhamos que inserir o nome da gestante para então depois ser feita a retificação com a decisão judicial”, afirmou.

Para Letícia, o Provimento é uma mudança de paradigma. “Sempre entendi que poderia registrar, mas como não havia autorização expressa, era necessário que submetêssemos aos juízes”, disse. O Provimento, ela garante, fortalece a visão de que o mais importante é a paternidade socioafetiva, “dos genitores que tiveram a ideia da concepção”. O Estado garantia o casamento homoafetivo, ela argumenta, mas não o registro dos filhos sem decisão judicial. “Foi ótima a solução, mas demorou um pouco, porque deveria ter sido junto à autorização do casamento homoafetivo”, disse.

Em relação à reprodução assistida após a morte, a oficial entende que o objetivo é aumentar a segurança com a exigência da autorização prévia lavrada por instrumento público, que não era prevista pelo artigo 1.597 do Código Civil. “A escritura declaratória evita a falsificação”, finalizou.

março 16, 2016

Dois textos sobre os efeitos civis do casamento religioso no Brasil

Amigos leitores, tomando por base aulas recentes de Direito de Família, resolvi postar aqui dois textos que abordam, em perspectivas distintas, a questão dos efeitos civis do casamento religioso. A questão é bem mais complexa que parece, e implica na leitura e estudo das legislações anteriores sobre a matéria, algumas delas, normas centenárias.

Assim, seguem os textos. Boa leitura a todos.

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Efeito civil do casamento religioso no Brasil ontem e hoje

Adam Kowalik


Sumário: 1.Casamento religioso e casamento civil. 2. As Constituições de 1934 e 1937 e a Lei n° 379, de 1937. 3.As Constituições de 1946 e 1967. 4. A Constituição Federal de 1988 e o Novo Código Civil. 4.1. Limites da Nova Constituição. 5. O sistema matrimonial brasileiro. 6.Conclusão.
Resumo: O casamento civil obrigatório é o sistema que, atualmente, abrange a imensa maioria dos países. Para que o casamento surta efeitos na esfera civil, há que ser realizado perante autoridade estatal. Assim, pouco importa a fé professada pelos nubentes. Eles deverão preencher todos os requisitos apontados pela legislação civil para que sua união matrimonial produza efeitos civis. No que concerne à celebração religiosa, esta valerá apenas para fins de credo pessoal dos nubentes. Já para o sistema do casamento facultativo, consoante a própria denominação, os nubentes podem optar pelo casamento civil ou religioso. Tanto num quanto noutro, o Estado conferirá todos os efeitos civis cabíveis. O casamento civil subsidiário caracteriza-se pela adoção de um Direito matrimonial religioso, pelo Estado. Somente as pessoas que não professem aquela fé possuem o direito ao casamento civil.
1-CASAMENTO RELIGIOSO E CASAMENTO CIVIL
Não sem muitas dificuldades, foi consolidado o casamento civil no Brasil, pois penoso ao povo brasileiro entender o porquê e a necessidade de um ato civil para legitimar a família se já existia o sacramento do matrimônio. “Implantada definitivamente a República, e instituído o casamento civil, único reconhecido pela nova Constituição Brasileira, convive-se com duas realidades: o casamento religioso e o casamento civil”[1].
Antonio Chaves, em seu Tratado de Direito Civil[2], aludido a essa dualidade de jurisdição com a implantação do casamento civil, e mencionado que tal fato ocorra também na Itália e Alemanha, transcreve trecho de Francisco Degni em sua obra Il Diritto di Famiglia nel Nuovo Códice Italiano:
“…perante a Igreja e perante o oficial do registro civil, pois se è verdade que o Estado não reconheceu outra forma de casamento senão o civil, è verdade também que a muito grande maioria dos cidadãos teve um conceito substancialmente diferente, porque nunca se julgou legitimamente fundada a família sem a celebração do casamento também perante a Igreja. Nenhuma mais gritante contradição jamais existiu do que esta, no nosso sistema jurídico positivo, entre o Estado, que recusou qualquer eficácia e qualquer importância ao casamento religioso, e a consciência comum dos cidadãos, que ao invés, continuou a atribuir a maior consideração, não somente com o entendimento de cumprir um dever de consciência, mas, outrossim, na convicção de cumprir um dever moral e cívico”.
As leis brasileiras não mais reconheciam o casamento religioso. Ao povo, na sua consciência religiosa, impossível compreender que, através de simples decreto, se retirasse o valor legal do sacramento do matrimônio; e que a família, constituída sob esse sacramento, fosse aos olhos da lei considerada ilegítima, e essa união, simples concubinato. Orlando Gomes, no primeiro capítulo da obra Direito de Família, já afirma que “…não se pode omitir a influência da Igreja, por sua doutrina e ação, na elaboração do estatuto da família… A Religião e a Moral influem na formação dos costumes familiares e, portanto, na legislação que o Estado dita para regular a constituição da família e as relações provenientes”[3].
Por outro lado, a Igreja fazia crer que o casamento civil nada valia aos olhos de Deus, era mero amasiamento. Na 2ª Pastoral Coletiva do Episcopado Brasileiro, datada de 6 de janeiro de 1900, transcorridos que dez anos da implantação do casamento civil, assim se expressavam os bispos do Brasil: “Decretou-se que o Estado, isto è, o Governo de uma noção católica, só reconhecerá o casamento civil, que diante de Deus e da Igreja è pura mancebia, coberta com a proteção das leis. A este concubinato dão eles, nome, fores, privilégios de casamentos”.
A concepção filosófica positivista, “…a falta de sensibilidade dos implantadores da República do Brasil desrespeitou o sentimento religioso do povo brasileiro. Não se quer recriminar o ato  de separar a Igreja do Estado, verdadeira alforria da Igreja no Brasil, mas critica-se a implantação do sistema do casamento civil exclusivo”[4]. Cândido Mendes, em 1866, em seu Direito Civil Eclesiástico Brasileiro[5], escreveu: “Seremos no futuro uma grande noção, e um poderoso instrumento de legitimo progresso, se nossa Igreja for livre…”.
O Padre Júlio Maria, no seu livro sobre as relações entre a Igreja e a Republica, escreve em ano 1900: “O que não è lícito desconhecer è que a república, logo no seu início, libertou a Igreja brasileira da escravidão em que jazia; è que, não obstante as omissões da Constituição, a Igreja brasileira, no regime do direito comum, inaugurado pelo decreto que aboliu o padroado, tem prosperado, e o sentimento católico se desenvolvido… Quaisquer que sejam, repito, os erros da República, em matéria de religião, è certo que ela deu à Igreja a liberdade”[6].
O não reconhecimento da religiosidade do povo brasileiro e o desrespeito às suas mais profundas tradições católicas, em nome da laicização do Estado, provocaram na realidade a existência de duas jurisdições matrimoniais: a religiosa e a civil, além da dualidade da de formas de celebração. O jurista Pontes de Miranda escreve no seu livro: “Não nos parece que o Estado deva impor o casamento civil ou qualquer forma de casamento religioso. Tampouco, visão sociológica das premissas permite que consideremos as religiões como simples negócios privados, pois que, antes de serem fatos interiores dos indivíduos, são processos sociais cá fora. A melhor solução è reconhecer o Estado segundo a religião dos nubentes, ou segundo as regras do direito interconfessional, quando forem de religiões diferentes, e permitir aos que não tem religião, ou que preferem casar-se sem os efeitos religiosos, o casamento civil”[7].
2-AS CONSTITUIÇÕES DE 1934 E 1937 E A LEI N° 379, DE 1937
Convocada a Assembléia Constituinte que promulgou a Constituição de 1934, a Igreja participa do processo de escolha dos seus membros por meio da Liga Eleitoral Católica, liderada por leigos, motivados da doutrina social da Igreja e quais defendiam um programa para a nova Constituição, no qual constava a indissolubilidade do casamento, com a não aceitação do divórcio e a atribuição de efeitos civis ao casamento religioso[8].
A Constituição de 1934  de certa forma recristianiza a legislação brasileira. Não retorna ao passado com a união da Igreja e do Estado, mas respeita o sentimento religioso dos cidadãos. No preâmbulo, os constituintes promulgam a nova Constituição, pondo sua confiança em Deus; o ensino religioso retorna às escolas; deve-se ministrar assistência religiosa aos militares; as associações religiosas voltam a gerir cemitérios; e o casamento religioso produz efeitos civis[9].
A Constituição de 1934 inaugura um capítulo reservado a disciplinar a matéria familiar. No art. 146, dispunha, in verbis: “O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição, sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório”.
O dispositivo constitucional foi regulado pela Lei n° 379, de 16 de janeiro de 1937. Não foi  feliz o legislador ordinário ao ementar a lei, determinando «regular o casamento religioso para os efeitos civis». Tal ementa foi alterada pelo Decreto-Lei 3.200, de 1941, passando a seguinte redação: «regula o reconhecimento de efeitos civis ao casamento religioso». Não há o ressurgimento da jurisdição religiosa, o casamento continua sendo o civil, com processo de habilitação civil, com jurisdição civil, mas a celebração poderia ser religiosa, presidida por ministro religioso. Dispunha o caput do art. 1° da referida lei:
“Aos nubentes è facultado requerer ao juiz competente para a habilitação conforme a lei civil, que seu casamento seja celebrado por ministro da Igreja Católica, do culto protestante, grego, ortodoxo, ou israelita, ou de outro cujo rito não contrarie á ordem pública e aos bons costumes”.
Relator dos Embargos no Recurso Extraordinário n° 83.859-7 RJ, no Supremo Tribunal Federal, em 1968, o ministro Cunha Peixoto, assim se manifestou: “A Constituição de 1934, abandonando o critério rígido relativamente ao casamento leigo, prevalente no princípio da República, seguiu um caminho mais liberal, ao permitir o casamento religioso com efeito civis, mediante a obediência de certas formalidades que o subordinam à legislação material. Era indispensável que os nubentes se habilitassem perante a autoridade civil, que resolvia os casos de oposição e verificava a existência ou não dos impedimentos. Só assim poderia o casamento celebrado perante sacerdote ou ministro de seita religiosa ser inscrito no Registro Civil”.
Os nubentes indicavam o nome do ministro religioso e seu culto, e o requerimento era apreciado pelo juiz que o deferia e determinava a expedição da certidão de habilitação para que o casamento fosse celebrado. Consistia em delegação do poder público para que o ministro religioso celebrasse o casamento, cujo processo de habilitação, repita-se, era civil, a jurisdição era civil. “Determinava o art. 11 que as ações de nulidade ou de anulação obedeceriam exclusivamente os preceitos da lei civil; o registro era obrigatório, mas a validade do casamento, inclusive para efeitos de impedimento e crime de bigamia, independia da existência do registro; e o padre, pastor ou rabino, no exercício da função de celebrante, equiparava-se a funcionário público, inclusive para fins criminais”[10].
Precedente seria sempre o processo de habilitação matrimonial, isto è, o casamento religioso para gerar efeitos civis deveria ser antecedido do processo de habilitação civil, não existindo a possibilidade de habilitação posterior. Só produziria efeitos civis, o casamento religioso, se antes de sua celebração o juiz o autorizasse, atendendo a requerimento dos nubentes, isto è, delegasse ao ministro do culto o poder de celebrar o casamento. Evidentemente que tal autorização descaracterizava o que se pode denominar de casamento religioso com efeitos civis. Tinha-se sim casamento civil, sob ritual religioso, celebrado por autoridade religiosa.
3-AS CONSTITUIÇÕES DE 1946 E 1967
Com a Constituição de 1946[11], os efeitos civis do casamento religioso retornaram ao «status» de matéria constitucional. Assim  dispôs a Lei Maior:
“Art. 163 – A família è constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.
§ 1° - O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Público.
§ 2° - O casamento religioso, celebrando sem as formalidades deste artigo, terá efeitos civis, se, a  requerimento do casal, for inscrito no Registro Público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente”.
No regime constitucional anterior existia somente a possibilidade do casamento religioso produzir efeitos civis com o precedente processo de habilitação. Com a nova Constituição , surge a previsão do § 2° do art. 163: “quando o casamento religioso fosse celebrado sem ter havido precedente habilitação, esta, a habilitação, poderia ser feita posteriormente e, em não havendo impedimentos de ordem civil, o casamento seria registrado perante o Estado e produziria efeitos civis a partir da data de sua celebração. Estabelecia a Constituição dois únicos requisitos: a inexistência de impedimentos da data da celebração até a data do registro, e fosse o registro a rogo do casal”.
Duas eram as modalidades do registro do casamento religioso para produzir efeitos civis: habilitação prévia e habilitação posterior, ambas reguladas pela Lei n° 1.110, de 23 de maio de 1950, qual regula o reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso:
“O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º O casamento religioso equivalerá ao Civil se observadas as prescrições desta Lei (Constituição Federal, art. 226, § 2º)
HABILITAÇÃO PRÉVIA
Art. 2º Terminada a habilitação para o casamento perante o oficial do registro civil (Código Civil artigos 180 a 182 e seu parágrafo) é facultado aos nubentes, para se casarem perante a autoridade civil ou ministro religioso requerer a certidão de que estão habilitados na forma da lei civil, deixando-a obrigatoriamente em poder da autoridade celebrante, para ser arquivada.
Art. 3º Dentro nos três meses imediatos à entrega da certidão, a que se refere o artigo anterior, (Código Civil, art. 181, § 1º), o celebrante do casamento religioso ou qualquer interessado poderá requerer a sua inscrição, no registro público.
§ 1º A prova do ato do casamento religioso, subscrita pelo celebrante conterá os requisitos constante dos incisos do art. 81 do Decreto número 4.857, de 9 de novembro de 1939 exceto o de número 5 (Lei dos registros públicos).
§ 2º O oficial de registro civil anotará a entrada no prazo do requerimento e, dentro em vinte e quatro horas, fará a inscrição.
HABILITAÇÃO POSTERIOR
Art. 4º Os casamentos religiosos, celebrados sem a prévia habilitação perante o oficial do registro público, anteriores ou posteriores à presente Lei, poderão ser inscrito desde que apresentados pelos nubentes, com o requerimento de inscrição, a prova do ato religioso e os documentos exigidos pelo art. 180 do Código Civil.
Parágrafo único. Se a certidão do ato do casamento religioso não contiver os requisitos constantes dos incisos do art. 81 do Decreto nº 4.857, de 9 de novembro de 1939, exceto o de número 5 (Lei dos registros públicos), os requerentes deverão suprir os que faltarem.
Art. 5º Processado a habilitação dos requerentes e publicados os editais, na forma do disposto no Código Civil, o oficial do registro certificará que está findo o processo de habilitação sem nada que impeça o registro do casamento religioso já realizado.
Art. 6º No mesmo dia, o juiz ordenará a inscrição do casamento religioso de acordo com a prova do ato religioso e os dados constantes do processo tendo em vista o disposto no art. 81 do Decreto nº 4.857, de 9 de novembro de 1938 (Lei dos registros públicos).
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 7º A inscrição produzirá os efeitos jurídicos a contar do momento da celebração do casamento.
Art. 8º A inscrição no Registro Civil revalida os atos praticados com omissão de qualquer das formalidades exigidas, ressalvado o disposto nos artigos 207 e 209 do Código Civil.
Art. 9º As ações, para invalidar efeitos civis de casamento religioso, obedecerão exclusivamente aos preceitos da lei civil.
Art. 10. São derrogados os artigos 4º e 5º do Decreto-lei nº 3.200, de 19 de abril de 1941, e revogadas a Lei nº 379, de 16 de janeiro de 1937, e demais disposições em contrário”[12].
Havendo processo de habilitação perante o oficial do Registro Civil, anterior à celebração do casamento, cabia ao celebrante, aos cônjuges ou a qualquer outro interessado, levar a registro o casamento religioso para produção de efeitos civis. Porém, do casamento religioso celebrado sem precedente processo de habilitação civil, cabia aos nubentes, e somente a eles, requer essa habilitação e o conseqüente registro; certificando o oficial do Registro Civil a habilitação do casal, isto è, declarando que à época do casamento religioso e depois dele até à data do registro não existia impedimento civil para o casamento, o juiz determinava a inscrição no Registro Civil. Em ambas as modalidades os efeitos civis se dariam a partir da data da celebração do casamento.
Estabelecia a Lei 1.110/50[13] em seu art. 3° que, no caso de habilitação prévia, o casamento religioso e o respectivo registro deveriam ser realizados no prazo de três meses, da data da expedição do certificado de habilitação dos nubentes, feita pelo escrivão do Registro Civil[14]. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal decidiu inconstitucional o prazo de três meses para o registro, podendo ser o casamento celebrado com habilitação prévia registrado a qualquer tempo:
“Casamento religioso. Inscrição no Registro Civil. Prazo. Precedido de habilitação perante o oficial do Registro Civil, não há prazo para qualquer dos cônjuges proceder a sua inscrição, segundo recente decisão do Plenário do S.T.F., ao emprestar exegese ao art. 3° da Lei 1.110/50, orientação que se mantém, mesmo após o advento da Lei 6.015/73, arts. 74 e 75, em harmonia com o disposto na Constituição, art. 175, §§ 2° e 3°”[15].
Não trouxe alteração importante ao sistema dos efeitos civis do casamento religioso na Constituição de 1967, ao dispor na sua redação original:
“Art. 167 – A família è constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos.
§ 1° - O casamento è indissolúvel.
§ 2° - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Público.
§ 3° - O Casamento religioso celebrado sem as formalidades deste artigo terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público mediante prévia habilitação perante a autoridade competente”.
A Emenda Constitucional n° 1/69, que deu nova redação à Constituição de 1967, tratou do assunto em seu art. 175, em nada alterando porém o texto original do art. 167.
Nova Lei dos registros Públicos foi promulgada em 1973, Lei n° 6.015, que em seus artigos 71 e 75 trata dos efeitos civis do casamento religioso. Esta Lei contempla a possibilidade de habilitação prévia ou posterior ao casamento religioso. No primeiro caso, cumpre aos nubente processar a habilitação matrimonial perante o oficial do registro civil, observando o disposto nos Arts. 180 e 182 do Código Civil. Obtido o certificado de habilitação matrimonial os nubentes o apresentarão ao ministro religioso. No segundo caso, ainda que não tenha havido prévia habilitação, poderá o casamento religioso ser inserido no registro público para obter efeitos civis. Para tanto se entregará ao oficial do registro civil a prova do casamento religioso e todos os documentos exigidos pelo Art. 180 da Lei Civil. Este processará a habilitação dos nubentes e dará certidão de que se acha findo o processo e de que nada impede o registro do casamento religioso. O juiz competente, em posse desta certidão, poderá fazer a inscrição do ato que produzirá todos os efeitos jurídicos civis, a partir da celebração do casamento religioso[16].
4-A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O NOVO CÓDIGO CIVIL
Tendo em vista a previsão constitucional para o casamento religioso com efeitos civis, o novo código Civil, lei ordinária, não tem força para extingui-lo. E, realmente não o fez. A matéria ora tratada vem disciplinada no Capítulo I – Disposições Gerais, Subtítulo I – Do Casamento, Título I – Do Direito Pessoal, Livro IV – Do Direito de Família.
O procedimento que, atualmente, é disciplinado parte na Lei n. 1.110/50 e parte na Lei n. 6.015/73, passará a ser regulado nos arts. 1.515 e 1.516 do novo Código[17].
O deslocamento das normas regulamentadoras do casamento religioso com efeitos civis da Lei n. 1.110/50 e Lei n. 6.05/73 para o corpo do novo Código Civil demonstra sua valorização pelo legislador. Aqui, será, obrigatoriamente, visto por todos que se depararem com o Direito de Família, já que está, topograficamente, logo nos primeiros artigos no Livro IV.
De pronto, o novo Código parece resolver problema apontado acerca da natureza do registro. Para a validade do casamento religioso é mister a inscrição no registro, donde se conclui que ele é da substância do ato.
O art. 1.516 no § 1º do cuida da habilitação prévia e no 2º da habilitação posterior.
No casamento religioso com efeitos civis mediante habilitação prévia, constata-se que o prazo para o registro foi dilatado de 30 para 90 dias. Os legitimados para o requerê-lo continuam os mesmos do art. 3º, da Lei n. 1.110/50 e art. 73 da lei n. 6.015/73, ou seja, a autoridade religiosa celebrante ou qualquer interessado.
Transcorridos os noventa dias sem qualquer manifestação das partes legitimadas a requerer o registro, bastará submissão a nova habilitação para que o casamento religioso seja registrado.
Ao disciplinar a habilitação posterior, o novo texto legal deixou a desejar; sua aprovação com a redação atual significará um retrocesso em face da legislação vigente. A razão desta crítica se deve ao fato de que, pela nova sistemática, a inscrição do casamento religioso no Registro Civil ficará subordinada à vontade dos nubentes. Pelo sistema atual, expedido o certificado, de ofício, o oficial remete ao juiz, que determina o registro.
Agora, os nubentes ficarão de posse do certificado de habilitação, válido por noventa dias, o que implica na possibilidade de efetivação ou não do registro. Aliás, isto dá margem à duas oportunidades para a não regulamentação do casamento religioso: a primeira, senão quiserem se submeter à habilitação, a segunda, se não requererem o registro.
Como lei fundamental e suprema do Estado, “[...] a Constituição é a norma que busca estruturar o Estado e a sociedade, delineando um modelo de Estado, projetando as relações entre o Estado e o cidadão, demarcando a esfera de atuação do Poder Público, suas competências e deveres [...]”. Sob a égide dos novos valores impressos nesta Constituição de 1988, após anos de discussões entra em vigor o Novo Código Civil, Lei nº 10.406 de 2002, que, no art. 1.512, estabelece que: “o casamento é civil e gratuita a sua celebração”, mas, diversamente da Lei nº 3.071/16, trata, também, do casamento religioso nos artigos 1.515 e 1.516. Tal fato demonstra que o Brasil não possui uma única religião oficial e, portanto, assegura, mais uma vez, o direito à liberdade religiosa, concedendo no campo jurídico tratamento igualitário às duas formas de casamento.
Art. 1.515. O casamento religioso, que atender às exigências da lei para a validade do casamento civil, equipara se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.
O art. 1.515 coloca como requisito para a validade do casamento religioso sua inscrição no registro.
Em se tratando de habilitação prévia, a inscrição no registro pode ser pedida pelo celebrante ou qualquer interessado. Diante disso, a morte de um deles, levando-se em consideração que a cerimônia religiosa é relevante juridicamente, não será empecilho para que o casamento religioso seja registrado, surtindo todos os efeitos legais cabíveis desde a data da celebração, se requerido no prazo legal. Por sua vez, no caso da habilitação posterior, a lei ordena o requerimento do casal. Assim, o óbito de um dos nubentes impedirá que o casamento religioso produza qualquer efeito jurídico.
A Lei n. 1.110/50 foi criticada por não estabelecer o rol das religiões idôneas à celebração e o novo Código Civil vai nesse trilhar. Bulhões de Carvalho já tecia suas críticas ao Anteprojeto de Código Civil, mencionando os pontos a serem reparados, dos quais se ressalta o primeiro:
 “a. fazer a lei uma enumeração mais completa das religiões notoriamente reconhecidas por sua idoneidade e regularidade de funcionamento, inclusive quanto ao registro de seus casamentos;”
Porém, nem sempre foi assim, porque a Lei n. 379/37 enumerava os ritos confessionais reconhecidos, de acordo com o magistério de Antonio Chaves[18]:
Os efeitos continuarão ex tunc, isto é, retroagirão à data da celebração, após o competente registro civil do casamento religioso (art. 1.515).
Em face do exposto, buscou-se demonstrar que o casamento religioso com efeitos civis tem amparo constitucional e na legislação ordinária, há mais de 50 anos, podendo ser mais um instrumento a unir homens e mulheres pelos laços do amor, afeto, fidelidade e amizade, para a consecução de seus objetivos mais íntimos.
“O casamento religioso recebe esta denominação porque a autoridade que preside a cerimônia é ministro eclesiástico. Contudo, as normas que o disciplinam são civis, cogentes, de ordem pública. Isto quer dizer que a autoridade religiosa não pode dispensar as formalidades exigidas por lei civil. Deve observá-las e, em obediência a elas, celebrar o matrimônio”[19].
Numa leitura apressada pode-se chegar à conclusão de que a autoridade religiosa tem a obrigação de celebrar o casamento, se os noivos atendem a todos os requisitos legais.
Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil.
§ 1º O registro civil do casamento religioso deverá ser promovido dentro de noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao ofício competente, ou por iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido homologada previamente a habilitação regulada neste Código. Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação.
§ 2º O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532 .
§ 3º Será nulo o registro civil do casamento religioso se, antes dele, qualquer dos consorciados houver contraído com outrem casamento civil.
Vê-se que, com o novo Código Civil, os art. 71 a 75 da Lei de Registro Públicos – Lei nº 6.015/73 e as normas da Lei nº 1.110/50, que disciplinavam as formalidades para o casamento religioso ser acolhido com efeitos civis, restaram revogados.
A inscrição no Registro Civil continua sendo requisito para a validade do casamento religioso, todavia, o prazo para sua requisição foi dilatado de 30 (art. 73 da Lei nº 6.015/73) para 90 dias a contar da celebração religiosa. A habilitação dos nubentes é requisito legal imprescindível para o registro do casamento, seja o civil ou o religioso, e pode ocorrer antes ou depois da cerimônia religiosa, conforme previa a Lei nº 1.110/50 e estabelece o vigente Código Civil.
Vislumbra-se, pelo disposto no § 2º do art. 1.516, que as prescrições legais indispensáveis ao reconhecimento de efeito civil ao casamento religioso são a habilitação dos contraentes e a inscrição do ato religioso, a requerimento do casal, no registro próprio.
Desta forma, qualquer outra exigência, diversa da habilitação e do registro, para a validação legal do casamento religioso é totalmente descabida em um Estado de Direito, onde as pessoas só estão obrigadas a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de lei (art. 5º, II, da CF/88 ).
Para compreender o processo de consolidação do princípio da liberdade religiosa, no âmbito do Código Civil de 2002, necessário destacar que a lei se utilizou, no art. 1.516, § 1º, do termo “celebrante”, sem vincular a qualquer religião específica, ou seja, não estabeleceu qual seria a autoridade religiosa competente para a celebração. Isto porque, uma vez desregulada a religião pelo Estado, cabe aos indivíduos nomearem as autoridades religiosas e forças religiosas, a partir das suas práticas devocionais, e não mais ao Estado, ao qual cabe apenas verificar se estão presentes os requisitos postos, no art. 1.516, pelo legislador.
4.1. Limites da Nova Constituição   
A nova Constituição limitou-se a atribuir efeitos civis ao casamento religioso a Constituição Federal de 1988 quando determinou:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1 O casamento è civil e gratuita a celebração.
§ 2 O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Se a constituições anteriores estabeleceram procedimentos para que o casamento religioso produzisse efeitos civis, não o fez a Constituição de 1988, que  se limitou a reconhecer a possibilidade do casamento religioso produzir efeitos civis, deixando ao legislador infraconstitucional os pressupostos exigidos e as formas a serem cumpridas pelos nubentes e pelo ministro de culto religioso.
“O casamento religioso recebe esta denominação porque a autoridade que preside a cerimônia é ministro eclesiástico. Contudo, as normas que o disciplinam são civis, cogentes, de ordem pública. Isto quer dizer que a autoridade religiosa não pode dispensar as formalidades exigidas por lei civil. Deve observá-las e, em obediência a elas, celebrar o matrimônio. Numa leitura apressada pode-se chegar à conclusão de que a autoridade religiosa tem a obrigação de celebrar o casamento, se os noivos atendem a todos os requisitos legais”[20].
O Código Civil de 1916 ignorou a existência do casamento religioso. Porém, tal lacuna foi preenchida pelo Código Civil de 2002, que trata da matéria em seus artigos 1.515 e 1.516, revogando tacitamente a Lei. 1.110/50, constituindo-se, portanto, na legislação ordinária aplicada aos efeitos civis do casamento religioso e, naquilo que não lhe for contrária, o será a Lei de Registros Públicos, Lei 6.015/73.
Nem todo casamento religioso produz efeitos civis, e imprecisa è a denominação «casamento religioso com efeitos civis», pois inexiste essa modalidade de casamento: o casamento ou è civil ou è religioso. O que admite a Constituição è que o casamento religioso possa produzir efeitos civis, como se casamento civil fosse. Por outro lado, não há nas igrejas duas formas de celebração de casamento: um casamento meramente religioso e um casamento religioso com efeitos civis. O casamento religioso è único, podendo produzir ou não efeitos civis, desde que o desejem e satisfaçam os nubentes as exigências legais. Extrai-se, pois, do art. 1.515 do novo Código Civil que o casamento religioso equipara-se ao civil, desde que satisfaça  as exigências da lei civil para a validade do casamento civil e esteja registrado no ofício do Registro Civil das Pessoas Naturais.
 “Assim, não se confundem efeitos civis do casamento religioso com casamento civil celebrado por autoridade religiosa. O casamento civil deve ser celebrado pela autoridade civil, seja o juiz de paz, seja o juiz de direito, conforme determine a organização judiciária local. Padres, pastores ou outros ministros religiosos não são autoridades competentes para celebrar casamento civil, não se podendo, conseqüentemente, sob pena da inexistência do casamento, delegar à autoridade religiosa a celebração do casamento civil”[21]. Autoridade religiosa celebra casamento religioso; casamento civil è celebrado por autoridade civil, poder para o qual não há previsão de delegação, pelo contrário, è inexistente o casamento celebrado por autoridade absolutamente incompetente. Autoridade religiosa è absolutamente incompetente para celebração do casamento civil.
Não pode qualquer igreja celebrar casamento capaz de produzir efeitos civis. Como visto, o sistema brasileiro atual não è o de delegação de celebração do casamento civil à autoridade religiosa (ministro religioso)[22], como aconteceu na vigência da Lei 379/37. Mais claramente, o casamento religioso com efeitos civis è diferente do casamento civil celebrado, por delegação do poder público, por autoridade religiosa; mas o sistema brasileiro è de concessão sine qua non, portanto, que a igreja ou religião possua, antes de tudo, sistema matrimonial próprio.
5- O SISTEMA MATRIMONIAL BRASILEIRO
No Brasil adota-se, curiosamente, o sistema matrimonial denominado anglo-saxão ou protestante, que è o de jurisdição matrimonial única (a do Estado) e com dualidade de formas: a religiosa e a civil. O Estado regula todo o direito matrimonial:  a capacidade das partes, os impedimentos, a validade e a dissolução do casamento, sendo irrelevante a jurisdição eclesiástica. Às partes è dado escolher somente a forma de celebração: religiosa ou civil.
A atribuição de efeitos civis ao casamento religioso continua a exigir três requisitos principais: vontade do casal, satisfação das exigências para o casamento segundo a lei civil e inscrição do casamento religioso no registro público. E dois são os momentos em que esses requisitos podem ser demonstrados à autoridade civil: antes ou depois da celebração do casamento religioso, portanto, com habilitação prévia ou posterior. Em quaisquer das modalidades, habilitação antecedente ou posterior, os efeitos civis são produzidos a partir da data da celebração[23].
Casamento religioso celebrado após o prazo de validade da certidão de habilitação só será registrado se feita nova habilitação; è como se não houvesse habilitação precedente. Assim também ocorre com o casamento religioso celebrado dentro do prazo de validade do certificado de habilitação, mas cujo registro no cartório civil só foi requerido transcorrido o prazo de noventa dias da celebração para que se efetive o registro, necessário se faz novo processo de habilitação antecedente.
“O requerimento de registro casamento religioso realizado sem a prévia habilitação legal deve ser firmado por ambos os nubentes e acompanhado da prova do ato religioso e documentos exigidos pelo art. 1.525 do Código Civil Brasileiro. Após a habilitação, com publicação de edital, certificando-se a ausência de impedimentos matrimoniais e causas suspensivas, fará o registro do casamento religioso. Destarte, o casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas no Código Civil terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante o Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais (art. 1.516, §2º,Código Civil Brasileiro) e observado o prazo de 90 dias da extração da certidão”[24].
Observa-se a impossibilidade de aplicação do entendimento do Supremo Tribunal antes referido sobre inexistência do prazo para o registro do casamento com habilitação prévia, pois as constituições de 1946, 1967 e a emenda de 1969, faziam expressa referência  à habilitação prévia e não estabeleciam prazo para a inscrição no Registro Público do casamento religioso, o que não se dá com a Constituição de 1988[25]. A atual Carta Política não estabelece formas ou pressupostos do registro, deixando-os ao arbítrio do legislador ordinário[26].
“O Espiritismo Kardecista, (Amor, Tolerância e Perdão), que não tem ritual de casamento, apareceu depois do casamento civil; “O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec, lançado em Paris, no ano de 1857, marca o início desta doutrina. O Espiritismo é, ao mesmo tempo, “uma ciência de observação e uma doutrina filosófica” e ele não se preocupa com as crenças dogmáticas, segundo Allan Kardec. A seita não possui ritual, não dispõe de vestes especiais, altares, imagens, hinos ou cantos, muito menos administração de sacramentos como o batismo, o casamento, etc; não há concessões de indulgências ou distribuição de títulos nobiliárquicos. Aliás, faz parte da seita acreditar que Deus ajuda a todos independentemente de se submeter ao rito religioso; o casamento para o Espiritismo é uma instituição, não um rito. Os espíritas procuram a autoridade civil para formalizar a união matrimonial.
Tem-se então, em conta, ser pressuposto essencial que uma religião deve seguir seus mandamentos e dogmas fundamentais; neste raciocínio, não há como reconhecer ao Espiritismo a condição de religião; é certo que apenas um ou dois Centros Espíritas, entre os cerca de 2,3 milhões de adeptos no Brasil, admitem tal derivação religiosa. A omissão enunciada compromete o sentido da responsabilidade a ser assumida perante as autoridades públicas, porque o celebrante é fiador da estabilidade matrimonial.
Os estatutos e os ensinamentos mostram que a seita espírita não possui o requisito de organização religiosa no relacionamento com o Estado, mesmo porque não pratica ações, semelhante à celebração do casamento religioso.
Não se há de invocar quaisquer dos incisos do artigo 5º da Constituição para definição da matéria, pois, não se veda direito aos espíritas de se casarem, mas a lei impede-lhe a opção de formalizar o ato religioso com efeitos civis na sua associação, através de seu presidente, que não é investido da missão de autoridade religiosa. O chamamento do inciso VI, artigo 5º da Constituição não ocorre nem mesmo quando um padre recusar na celebração do casamento religioso de um ateu. É que o cidadão que não crer em Deus tem liberdade de crença e não terá prejuízo com a resistência do pároco, porque recorre ao casamento civil.
A celebração de casamento por dirigentes de Centros Espíritas implica em liberar o casamento religioso com efeitos civis para grupos sociais similares. Sem violar direito algum, o espírita, como qualquer cidadão, independentemente de crença ou de convicção filosófica, pode realizar o casamento junto à autoridade civil, sem passar pela autoridade religiosa. Afinal, o Centro Espírita é uma associação com estatutos que definem direitos e obrigações para os sócios e para os dirigentes. Entre os poderes conferidos à diretoria, como já se disse, não consta ritual para celebração de casamento”[27].
6- CONCLUSÃO
Com a redação do § 3° do art. 1.516 do novo Código Civil, quis o legislador ordinário deixar claro que, no sistema matrimonial brasileiro, vale mesmo  è o casamento civil, vez que declara nulo o registro civil do casamento religioso se, antes dele (do registro), qualquer dos consorciados houver contraído casamento civil com outrem. Não há ressalva se se trata de habilitação anterior ou posterior. Ora, tal determinação para os casos de habilitação prévia deixa inseguro o próprio procedimento estabelecido; pois, se alguém realiza habilitação e celebra o casamento sob a forma religiosa ainda no prazo de registro, casa civilmente com terceiro, traz dano ao cônjuge enganado. Deveria o legislador ter agido de forma mais coerente: se o nubente procede regularmente à habilitação matrimonial e requer seja a celebração religiosa, è óbvio que, pelo menos no prazo do registro, deveria ser impedido de contrair outro casamento, e em contraindo, nesse prazo, deveria ser tal matrimônio considerado nulo.
Melhor andou o legislador de 1937, quando, no art. 9° da Lei 379, dizia constituir crime de bigamia celebrar casamento civil com terceiro após a realização de casamento religioso com efeitos civis, antes mesmo da inscrição no Registro Civil.
A legislação brasileira pretendeu suavizar a radical dicotomia existente entre matrimônios civil e religioso, fruto da separação completa entre a Igreja e o Estado, consumada pela Constituição de 1891. Quando o Estado reconhece os efeitos jurídicos do matrimônio religioso, não vem a dar sanção pública a uma verdade religiosa nem a reconhecer oficialmente um determinado credo. Pelo contrário, apenas outorga efeitos jurídicos a um fato social que, fundamentado no Direito natural, è considerado por uma parte da população – no caso do Brasil pêra maioria – como verdadeiro matrimônio.

Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973
Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências.
CAPÍTULO VII
Do Registro do Casamento Religioso para efeitos Civis

Art. 71. Os nubentes habilitados para o casamento poderão pedir ao oficial que lhe forneça a respectiva certidão, para se casarem perante autoridade ou ministro religioso, nela mencionando o prazo legal de validade da habilitação.
Art. 72. O termo ou assento do casamento religioso, subscrito pela autoridade ou ministro que o celebrar, pelos nubentes e por duas testemunhas, conterá os requisitos do artigo 71, exceto o 5°.
Art. 73. No prazo de trinta dias a contar da realização, o celebrante ou qualquer interessado poderá, apresentando o assento ou termo do casamento religioso, requerer-lhe o registro ao oficial do cartório que expediu a certidão.
§ 1° O assento ou termo conterá a data da celebração, o lugar, o culto religioso, o nome do celebrante, sua qualidade, o cartório que expediu a habilitação, sua data, os nomes, profissões, residências, nacionalidades das testemunhas que o assinarem e os nomes dos contraentes.
§ 2º  Anotada a entrada do requerimento, o oficial fará o registro no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.
§ 3º A autoridade ou ministro celebrante arquivará a certidão de habilitação que lhe foi apresentada, devendo, nela, anotar a data da celebração do casamento.
Art. 74. O casamento religioso, celebrado sem a prévia habilitação, perante o oficial de registro público, poderá ser registrado desde que apresentados pelos nubentes, com o requerimento de registro, a prova do ato religioso e os documentos exigidos pelo Código Civil, suprindo eles eventual falta de requisitos nos termos da celebração.
Parágrafo único. Processada a habilitação com a publicação dos editais e certificada a inexistência de impedimentos, o oficial fará o registro do casamento religioso, de acordo com a prova do ato e os dados constantes do processo, observado o disposto no artigo 70.
Art. 75. O registro produzirá efeitos jurídicos a contar da celebração do casamento.

Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002
Institui o Código Civil
1.515. O casamento religioso, que atender às exigências da lei para a validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.
Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil.
§ 1o O registro civil do casamento religioso deverá ser promovido dentro de noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao ofício competente, ou por iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido homologada previamente a habilitação regulada neste Código. Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação.
§ 2o O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532.
§ 3o Será nulo o registro civil do casamento religioso se, antes dele, qualquer dos consorciados houver contraído com outrem casamento civil.

Bibliografia
CIFUENTES, R.L., Relações entre a Igreja e o Estado, Rio de Janeiro 1989, Ed. José Olimpio.
CUNHA, C., Efeito Civil do Casamento Religioso, in Direito&Pastoral, 18 (2004), n° 48.
DOLINGER, J., Direito Civil Internacional – A Família no Direito Internacional Privado, Vol. I, São Paulo 1997, Ed. Renovar.
JULIO MARIA, A Igreja e a Rrepública, Brasília 1981, Ed. Universidade de Brasília.
MIRANDA, P., Comentários à Constituição de 1946, Rio de Janeiro 1960.
VENOSA, S.S., Direito Civil – Direito de Família, Vol. VI, São Paulo 2002, Ed. Atlas.
 
Notas:
[1] CUNHA, C.,  Efeito Civil do Casamento Religioso, in Direito&Pastoral, Ano XVIII (2004), n° 48, p. 18.
[2] CHAVIS, A.,  Tratado de Direito Civil. Direito de Família, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1991, Vol. 5, T. I, p. 203.
[3] GOMES, O.,  Direito de Família, Rio de Janeiro 1999.
[4] CUNHA, C.,  Efeitos civis…, cit., p. 20.
[5] ALMEIDA, CANDIDO MENDES DE, Direito Civil Eclesiástico Brasileiro Antigo e Moderno e suas relações co o Direito Canônico, Rio de Janeiro, 1866, p. 417.
[6] JULIO MARIA,  A Igreja e a Rrepública, Brasília 1981, Ed. Universidade de Brasília, p. 83.
[7] PONTES DE MIRANDA,  Tratado de Direito de Família, Campinas, 2001, p. 94.
[8] Cf CIFUENTES, R.L.,  Relações entre a Igreja e o Estado, Rio de Janeiro 1989, Ed. José Olimpio, pp. 251-252.
[9] Cf. BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Do casamento religioso com efeitos civis e o novo Código Civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: .
[10] CUNHA, C., Efeitos civis…, cit., p. 25.
[11] Cf. MIRANDA, P.,  Comentários à Constituição de 1946, Rio de Janeiro 1960, pp. 182-183.
[12] Rio de Janeiro, 23 de maio de 1950; 129º da Independência e 62º da República. EURICO G. DUTRA Honório Monteiro.
[13] “Não se enumerou as religiões ou cultos com a prerrogativa de celebrarem casamento religioso com efeito civil. Em 1950, e já se vão mais de 50 anos, a Lei n. 1.110 foi criticada exatamente por omitir o rol das religiões idôneas para a formalização do casamento. Bulhões de Carvalho foi um dos juristas que pugnou pela especificação, no Código atual, das religiões merecedoras de crédito; a lei, entretanto, omitiu-se, deixando em aberto e, portanto, tornando mais abrangente o espaço das religiões com poderes para a formalização do casamento com efeitos civis. Todavia, nem sempre foi assim, porque a Lei n. 379/37 arrolava os ritos confessionais: as religiões católica, protestante, muçulmana e israelita. A evolução da sociedade criou o registro público, os direitos e deveres do homem, da mulher, dos filhos, e o casamento civil substituiu o religioso na estabilidade da união matrimonial. A despeito da preocupação do legislador, registre-se que o casamento religioso transformou-se num ato social, sem maiores implicações com a fé dos noivos. Com efeito, tornou-se comum sua celebração em religiões que nada têm a ver com a fé praticada pelos nubentes. Um padre ou pastor desta ou daquela Igreja formaliza o casamento de pessoas que têm prática religiosa diversas; a despeito disto, o credo escolhido insere sempre o casamento no ritual de suas práticas. Nosso ordenamento jurídico não possui dispositivo algum que obrigue qualquer Igreja a realizar a cerimônia do casamento; concede aos nubentes a faculdade de buscar um templo para formalizar o ato, de acordo com os regramentos internos, para posterior reconhecimento de efeito civil; pode, entretanto optar somente pelo casamento civil. (CARDOSO, A.P.,  Casamento religioso com efeitos civis, artigo publicado in http://www.amb.com.br/portal/index.asp?secao=artigo_detalhe&art_id=311, da página da Associação dos Magistrados Brasileiros).
[14] Cf. sobre este tema os comentários de Espínola, E., A família no Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro 1954, pp. 140-144.
[15] Recurso extraordinário conhecido pelo dissídio pretoriano, mas não provido. (Recurso Extraordinário n° 88.324-0 – Rio de Janeiro. Ministro Carlos Thompson Flores. Julgado em 27 de novembro de 1979. Publicado no DJU no dia 25 de fevereiro de 1980).
[16] (Arts. 6º. e 7°; Lei nº. 6.015 de dezembro de 1973, Art. 76).
[17] Cf. VENOSA, S.S.,  Direito Civil – Direito de Família, Vol. VI, São Paulo 2002, Ed. Atlas, pp. 105-106; DOLINGER, J., Direito Civil Internacional – A Família no Direito Internacional Privado, Vol. I, São Paulo 1997, Ed. Renovar, pp. 46-48.
[18] CHAVES, A., Tratado de direito civil. 2ª ed. rev. amp., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994.
[19] BRANDÃO, D.V.C., Do casamento religioso com efeitos civis e o novo Código Civil, in Ius Navegandi, http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2662.
[20] BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Do casamento religioso…, cit.
[21] CUNHA, C., Efeitos civis…, cit., p. 33.
[22] “A classificação brasileira de ocupações – CBO é o documento normalizador do reconhecimento, da nomeação e da codificação dos títulos e conteúdos das ocupações do mercado de trabalho brasileiro, sendo uma classificação enumerativa e descritiva. A função enumerativa da CBO é utilizada em registros administrativos como Relação Anual de Informações Sociais – RAIS, Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – Cged, Seguro Desemprego, Declaração de Imposto de Imposto de Renda de Pessoa Física- Dirpf, dentre outros.A função descritiva é utilizada nos serviços de recolocação de currículos e na avaliação de formação profissional, nas atividades educativas das empresas e dos sindicatos, nas escolas, nos serviços de imigração, enfim em atividades em que informações do conteúdo do trabalho sejam requeridas. Pois bem, dentro da classificação brasileira de ocupações, encontramos a  2631-5 – Ministros de culto religioso e nela, encontramos como tal definidos: Abade, Abadessa, Administrador apostólico, Administrador paroquial, Agaipi, Agbagigan, Agente de pastoral, Agonjaí, Alabê, Alapini, Alayan, Ancião, Apóstolo, Arcebispo, Arcipreste, Axogum, Babá de umbanda, Babakekerê, Babalawô, Babalorixá, Babalossain,Babaojé, Bikkhu, Bikkuni, Bispo, Bispo auxiliar, Bispo coadjutor, Bispo emérito, Cambono , Capelão,Cardeal, Catequista, Clérigo,Cônega, Cônego, Confessor, Cura, Curimbeiro, Dabôce, Dada voduno, Dáia, Daiosho, Deré, Diácono, Diácono permanente, Dirigente espiritual de umbanda, Dom, Doné, Doté, Egbonmi, Ekêdi, Episcopiza, Evangelista, Frade, Frei, Freira, Gaiaku, Gãtó, Gheshe, Humbono, Hunjaí, Huntó, Instrutor de curimba, Instrutor leigo de meditação budista, Irmã, Irmão, Iyakekerê, Iyalorixá, Iyamorô, Iyawo, Izadioncoé, Kambondo pokó, Kantoku (diretor de missão), Kunhã-karaí, Kyôshi (mestre), Lama budista tibetano, Madre superiora, Madrinha de umbanda, Mameto ndenge, Mameto nkisi, Mejitó, Meôncia, Metropolita, Ministro da eucaristia, Ministro das ezéquias, Monge, Monge budista, Monge oficial responsável por templo budista (Jushoku), Monsenhor, Mosoyoyó, Muézin, Muzenza, Nhanderú arandú, Nisosan, Nochê, Noviço , Oboosan, Olorixá, Osho, Padre, Padrinho de umbanda, Pagé, Pároco, Pastor evangélico, Pegigan, Pontífice, Pope, Prelado, Presbítero, Primaz, Prior, Prioressa, Rabino, Reitor, Religiosa, Religioso leigo, Reverendo, Rimban (reitor de templo provincial), Roshi, Sacerdote, Sacerdotisa,Seminarista, Sheikh, Sóchó (superior de missão), Sokan, Superintendente de culto religioso, Superior de culto religioso, Superior geral, Superiora de culto religioso, Swami, Tata kisaba, Tata nkisi, Tateto ndenge, Testemunha qualificada do matrimônio, Toy hunji, Toy vodunnon, Upasaka, Upasika, Vigário, Voduno (ministro de culto religioso), Vodunsi (ministro de culto religioso), Vodunsi poncilê (ministro de culto religioso), Xeramõe (ministro de culto religioso), Xondaria (ministro de culto religioso), Xondáro (ministro de culto religioso), Ywyrájá (ministro de culto religioso). Tais ministros realizam liturgias, celebrações, cultos e ritos, dirigem e administram comunidades; formam pessoas segundo preceitos religiosos das diferentes tradições; orientam pessoas; realizam ação social junto a comunidade; pesquisam a doutrina religiosa; transmitem ensinamentos religiosos, praticam vida contemplativa; preservam a tradição e , para isso é essencial o exercício de competências pessoais específicas. Podem desenvolver as suas atividades como consagrados ou leigos, de forma profissional ou voluntária, em templos, igrejas, sinagogas, mosteiros, casas de santo e terreiros, aldeias indígenas, casas de culto etc. Estando também presentes em universidades e escolas, centros de pesquisa, sociedades beneficentes e associações religiosas, organizações não governamentais, instituições públicas e podem dentre outras atribuições, celebrar casamentos.Encontramos destarte, dentro desta classificação, o catequista. Diz-se catequista a pessoa que catequiza, que explica o catecismo e o vocábulo Catecismo, segundo o dicionário Aurélio, significa livro elementar de instrução religiosa, doutrinação elementar sobre qualquer ciência” (Soraya Moradillo Pinto, O direito dos nubentes espíritas de se casarem perante dirigente de Centro Espírita, in: http://www.amab.com.br/amab2006/artigos.php?fazer=det&cod=70).
[23] “O casamento religioso recebe esta denominação porque a autoridade que preside a cerimônia é ministro eclesiástico. Contudo, as normas que o disciplinam são civis, cogentes, de ordem pública. Isto quer dizer que a autoridade religiosa não pode dispensar as formalidades exigidas por lei civil. Deve observá-las e, em obediência a elas, celebrar o matrimônio. Numa leitura apressada pode-se chegar à conclusão de que a autoridade religiosa tem a obrigação de celebrar o casamento, se os noivos atendem a todos os requisitos legais. Não. A Constituição consagra como direito fundamental, no art. 5º, inc. VI, que "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos..." Em razão da liberdade de consciência é possível que um padre ou pastor se neguem a realizar um casamento se um dos nubentes não for batizado, for ateu, etc. Um rabino pode, eventualmente, em cumprimento às normas pertinentes ao seu credo, negar-se a realizar o matrimônio quando um dos nubentes não tiver origem judaica.
Assim, os ministros de confissão religiosa não são obrigados a celebrar o matrimônio, mas ao fazê-lo cumprirão fielmente a lei civil. De acordo com o já exposto, não era esta a letra da lei. O casamento, desde meados da Idade Média, era matéria afeta ao Direito Canônico e, portanto, o Estado não tinha competência para legislar sobre esta matéria. Ponto muito delicado diz respeito ao reconhecimento da confissão religiosa e, por conseguinte, de sua autoridade” (CAÚS BRANDÃO, Débora Vanessa Do Casamento Religioso com efeitos civis e o Novo Código Civil, em: http://www.mp.am.gov.br/index.asp?page=cao-civel-familia-03-02-07).
[24] CAMOLESI, Marcos Roberto Haddad, Do registro de casamento religioso com efeito civil. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 170. Disponível in: Acesso em: 12  abr. 2007.
[25] A legislação brasileira permite e autoriza a não-inscrição do registro dos matrimônios religiosos. Cabe agora perguntar qual è a condição jurídica dos casamentos religiosos não inscritos? Têm alguma relevância jurídica? São atos que dêem origem a efeitos jurídicos civis? Pontes de Miranda afirma que no Brasil co casamento religioso não inscrito “não è nulo nem anulável e sim, no terreno jurídico, inexistente” (Pontes de Miranda,  Tratado de Direito Privado, T. VII,  Direito de Personalidade. Direito de Família, Rio de Janeiro 1955, p. 228.
 
[26] Citado pelo Ministro Xavier de Albuquerque, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n° 75.047 – Guanabara, o desembargador Luis Antônio de Andrade afirma em voto: «Ora, sendo formalidade essencial a inscrição, no registro, do casamento religioso naquele prazo de 90 dias, e não tendo havido tal inscrição, não existe casamento perante as leis civis, haverá apenas casamento religioso com efeitos próprios da  seita a que pertenceram os interessados…».
[27] CARDOSO, A.P.,  Casamento religioso com efeito civil, in: http://www.amb.com.br/portal/index.asp?secao= artigo_detalhe&art_id=311
 

Informações Sobre o Autor

Adam Kowalik Juiz do Tribunal Eclesiástico, professor de Direito de Família e de Direito Eclesiástico Público no Instituto Superior de Direito Canônico no Rio de Janeiro.

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Direito Civil Atual

A crítica de Coelho Rodrigues é importante ainda hoje em dia


 Antonio Coelho Rodrigues é o responsável pela elaboração da lei que introduziu o casamento civil no Brasil (Decreto 181, de 24 de Janeiro de 1890). Além de ser um sinal de distanciamento entre a religião e o Estado, a introdução do casamento civil foi um dos motores da Guerra de Canudos (1896-1897), nos sertões da Bahia, deixou um saldo de mais de 20 mil mortes. Para efeito de comparação, o Massacre de Srebrenica (1995), considerado o maior assassinato em massa desde a Segunda Guerra Mundial, resultou em cerca de 9 mil mortos.[1] A insurreição liderada por Antônio Conselheiro parece desmentir a crônica oficial, que apresenta um suposto caráter pacífico e ordeiro do povo brasileiro; que insiste em descrever a República e instituições tais como o casamento civil como frutos dos anseios da população. A proclamação da república no Brasil não constituiu uma ruptura com as estruturas arcaicas, mas (no máximo) um “glissement”. A literatura da época soube registrar a preservação do status quo estamental, que termina por ceder alguns dos seus espaços, “porém, aos poucos. Tão lentamente que o Império Brasileiro encerrou-se definitivamente em outubro de 1930”.[2]

A artificialidade da implantação do regime republicano entre nós pode ser evidenciada não apenas na manutenção das estruturas sociais; mas também no aproveitamento de pessoas de “confiança” do Imperador no preenchimento de cargos na fase republicana. Exemplo disto é o de Antonio Coelho Rodrigues, que fez parte das duas últimas comissões formadas ao tempo da monarquia em prol da feitura de um Código Civil: a Comissão de 1881 (para revisar o Projeto de Felício dos Santos) e a Comissão de 1889 (presidida “de fato” pelo Imperador Dom Pedro II, e dissolvida após a Proclamação da República). Com a República, foi Senador e Prefeito do Distrito Federal, e o responsável pela elaboração da Lei do Casamento Civil; cabendo-lhe também “um Projeto de Código Civil, encomendado pelo governo, o qual saiu a lume em 1893 e, depois reeditado com introdução histórica, exposição de motivos e discussão em 1897”.
Destacam-se, além do Projeto de Código Civil, as seguintes obras de sua autoria: “Da República na América do Sul, Einsielden, Suíça, 1906, 2ª ed., Manual do súdito fiel e outros escritos menores”.[3] Atente-se, pois, para a sequência dos acontecimentos: I) em 1 de Junho de 1889, é nomeado pelo Imperador membro da Comissão incumbida da redação do Código Civil brasileiro; II) em 21 de Novembro de 1889, a Comissão outrora nomeada pelo Imperador é dissolvida pelo Ministério da Justiça do Governo Provisório da República; III) em 24 de Janeiro de 1890, o Decreto n. 181- redigido por Coelho Rodrigues - institui o Casamento Civil; IV) em 02 de Julho de 1890, é contratado para a elaboração do Projeto de Código Civil.
O fato de ele ter elaborado o projeto da Lei do Casamento Civil, contudo, não deixa de ser uma ironia. Em 1884, publica sob pseudônimo o seu Manual do súbdito fiel, onde expressa insatisfação em relação às políticas desenvolvidas pelo gabinete liberal à época. Entre diversas críticas dirigidas ao governo ainda monárquico, cria uma situação hipotética e coloca a seguinte frase na boca de um padre, personagem que irá representar a ala da Igreja insatisfeita com a monarquia: “Depois, a influência soberana também tocou-me por casa, no projecto do casamento civil e na questão dos frades, (...)”.[4]
Ora, se o casamento civil serviu de mote para a crítica ao governo nos tempos da Monarquia, coube-lhe a redação da Lei do Casamento Civil com o advento da República. A transição da crítica à aceitação dá-se sem maiores problemas para Coelho Rodrigues. O que era abominável no projeto dos liberais no poder à época do Imperador Pedro II, ganhará concretude com a colaboração do outrora “súdito fiel” e líder do Partido Conservador. Ele confessa sua visão relativista em relação a tais diferenças ideológicas:
Apezar, porém, das doutrinas do meu autor predilecto, cedo verifiquei que isso de conservadores e liberaes no Brazil eram modos de dizer, ou methodo de opposição ao governo, e, como os meus parentes já andavam mettidos com os primeiros reuni-me a elles e fiz-me conservador, mesmo porque tinha alguma cousa que perder e a gente só póde ser liberal sem restricções, quando tem o pão certo, sem trabalho, como os altos funccionarios, ou chega á condição de proletário.[5]
Fazendo uso de uma fina ironia, afirma que os brasileiros geralmente desejam um título científico e um emprego público. Com a conquista do emprego público, passam a desejar uma cadeira na Câmara dos Deputados, após isto uma cama no Senado, em seguida uma poltrona no Conselho de Estado e, por fim, uma rede de dormir no Conselho de Estado.[6] Ademais, critica a possibilidade de abolição da pena de morte, que – apesar de ser do desejo da maioria dos filósofos – deve ficar fora das cogitações do Imperador. Pois, enquanto o filósofo “deve ser o apóstolo da igualdade”, considera o Rei “a incarnação suprema da desigualdade política”.[7] A questão central da obra é a escravidão; a “irmã gêmea” Monarquia no continente americano. Assim, insinua que a abolição da escravidão levaria à supressão da monarquia.[8] O que, de fato, terminou por ocorrer. Todavia, no intuito de persuadir o Imperador a não ceder aos abolicionistas, invoca o argumento da tradição ou dos costumes, bem ao gosto dos historicistas:
Eu não creio que instituições seculares possam ser reformadas e transformadas de improviso a golpes de decretos; pelo contrario, attribúo a esse preconceito os resultados negativos das grandes aspirações da revolução de 1789, e receio muito que a escravidão, supprimida por esse processo de sobre a nossa raça africana, resurja no dia seguinte por sobre a branca e a mestiça, que constituem a maioria do paiz.[9]
Registre-se, ainda, que Coelho Rodrigues faz uma crítica pontual à ausência de Código Civil ainda ao tempo da Monarquia, ao afirmar que “o governo conserva a linguagem das Ordenações, ou fala um dialecto mixto, que não é bem o francez, nem o portuguez, e que só elle entende, se é que o entende”.[10] Assim, o golpe republicano parece não haver impactado as antigas estruturas de poder de maneira significativa. Os mesmos homens de “confiança” do Imperador continuavam ocupando posições de destaque na república recém instalada. Coelho Rodrigues é um excelente exemplo disto. Na próxima semana, abordaremos a relação de Coelho Rodrigues com os membros da chamada “Escola do Recife” e sua influência no Projeto de Código Civil de Clóvis Bevilaqua.
Coelho Rodrigues obteve o título de bacharel pela Faculdade de Direito do Recife em 1866. No ano de 1870, recebeu o título de doutor em direito pela mesma faculdade. Isto poderia servir de argumento para inseri-lo naquilo que se convencionou chamar de “geração 70”. Entretanto, vincula-se a Escola do Recife à chamada “geração 70”, ou seja, àqueles juristas que concluíram o curso de bacharelado em Direito ao longo da década de 1870, no ambiente da Faculdade de Direito do Recife.
Após subsequentes gerações fortemente influenciadas por ideais românticos, a chamada geração 70 apresenta-se como aquele grupo de pessoas que cuidará de matar o velho, de modo a preparar a chegada do novo.
O “novo”, então, era identificado com o materialismo, o cientificismo, o anticlericalismo etc.; de modo a recepcionar algumas das doutrinas em voga na época, quais sejam: o positivismo, de Comte e de Littrè; o evolucionismo de Haeckel e Spencer, etc.[1]
Coelho Rodrigues, contudo, foi um ferrenho defensor da manutenção da escravidão durante a monarquia, e só se manifesta claramente e publicamente em prol da república após a sua proclamação e a expulsão da família real do Brasil. Isto não significa, todavia, que ele pode ser simplesmente rotulado como conservador e que os membros da Escola do Recife devem ser considerados a vanguarda daquele tempo.
Clóvis Bevilaqua, por exemplo, é constantemente referido como um dos mais notáveis componentes da Escola do Recife; mas também pode ser apontado como agente da manutenção das velhas estruturas jurídicas e sociais. Como se pode notar em seu projeto de Código Civil, levando-se em consideração os projetos anteriores de Teixeira de Freitas e Coelho Rodrigues.
Se muitos dos egressos da Faculdade de Direito do Recife presentes aos debates no Congresso Nacional eram favoráveis à inserção do divórcio a vínculo no Código Civil, em vista da influência das concepções materialistas hauridas no ambiente da Faculdade pernambucana; a atitude de Bevilaqua foi a de se integrar ao coro dos católicos e dos positivistas comteanos. Apesar de sua posição comteana moderada, Clóvis Bevilaqua é relacionado por Pontes de Miranda no grupo dos positivistas comteanos que se uniram aos católicos a fim combater “renhidamente” a proposta favorável ao divórcio.[2] Termina por ser mais conservador do que o Imperador em relação a quem fez uma acirrada oposição. Pois, a última Comissão incumbida da tarefa de elaborar o Código Civil ao tempo do Império – presidida “de fato” pelo Imperador – chegou a deliberar pela admissão do divórcio entre nós, mas somente em caso de adultério[3].
Por outro lado, para Clóvis Bevilaqua: “Sobre esta tormentosa questão do divorcio, não pareceu licito ao auctor do Projecto avançar uma linha”.[4] A atitude de Clóvis Bevilaqua em relação ao divórcio também termina por ser mais conservadora que a legislação vigente à época. O Decreto 181, de janeiro de 1890 (Lei do Casamento Civil), admitia a possibilidade do divórcio. O divórcio, contudo, não tinha o condão de dissolver o vínculo conjugal, prestando-se apenas para permitir a “separação indefinida dos corpos” e a cessação do regime de bens (artigo 88).
Como já dito na primeira parte deste estudo, trata-se da alteração mais significativa no direito civil brasileiro em muito tempo. O artigo 82 da Lei do Casamento Civil estabelecia que o pedido de divórcio só poderia ter por causa a prática do adultério (parágrafo 1º), sevícia ou injúria grave (parágrafo 2º), abandono voluntário do lar conjugal e prolongado por dois anos contínuos (parágrafo 3º), ou em virtude do mútuo consentimento dos cônjuges, se forem casados há mais de dois anos (parágrafo 4º). Tal possibilidade deferida pela Lei do Casamento Civil (de 1890) restará obstada com o advento do Código Civil de 1916, projetado por Clóvis Bevilaqua.
Não há que se falar, portanto, em um sentido cabalmente inovador no Projeto de Código Civil de Clóvis Bevilaqua. Isto porque as contribuições mais significativas e numerosas são de Teixeira de Freitas e Coelho Rodrigues: “Breve estatística poderia dizer-nos que foi, ainda em 1900-1915, Teixeira de Freitas, o codificador de 1860, quem mais criou no Codigo; depois, Coelho Rodrigues, Bevilaqua, a Commissão revisora e o Senado”.[5] Isto talvez se deva ao fato de Clóvis Bevilaqua ser pouco afeito à práxis jurídica á época, por exercer exclusivamente a docência, diversamente de advogados experientes como Teixeira de Freitas e Coelho Rodrigues. Sem dúvida, o simples fato de Coelho Rodrigues haver sido incumbido da tarefa de formular a Lei do Casamento Civil já o coloca em uma posição de destaque entre os reformadores do direito civil brasileiro.
A década iniciada com a Proclamação da República não trouxe alterações significativas em matéria de direito privado, mas deve-se ressaltar a relevante alteração ocorrida no direito de família (a Lei do Casamento Civil), como exceção dentro daquele quadro geral.[6] A inserção de Clóvis Bevilaqua na “geração 70” se dá em virtude de sua parcial adesão às idéias de Tobias Barreto, e não à sua atitude conservadora, ou vanguardista. Coelho Rodrigues, por outro lado, não se alinhava ideologicamente com os seguidores de Tobias Barreto. Ele combatia vigorosamente as idéias pregadas por Tobias Barreto e seus discípulos, chegando a protagonizar o conhecido episódio da reprovação de Sílvio Romero. Em 1875, Sílvio Romero submeteu-se a banca a fim de obter o grau de doutor perante da Faculdade de Direito do Recife. Francisco de Paula Baptista registrou o famoso diálogo entre o candidato e o examinador Coelho Rodrigues:
"Em seguida, [o Dr. Coelho Rodrigues] passou à segunda tese de direito romano, concebida nos seguintes termos: “O 'ius in re' compreende também a posse”. E, depois de uma discussão mais moderada que as duas precedentes, pergunta aquele doutor: – qual a ação, que garante esse Direito real, no seu entender? – Isto não é argumento, responde o doutorando – Por quê? pergunta aquele. – Porque, responde-lhe este, não se pode conhecer a causa pelo efeito. – Pois admira-me, torna o primeiro, que, tendo-se mostrado o senhor tão contrário ao método metafísico, na epígrafe das suas teses (a qual repetiu, traduzindo o inglês, em que estava escrita), recuse agora um argumento 'a posteriori'. – Nisto não há metafísica, Sr. Doutor, diz o segundo, há lógica. – A lógica, replica o argüente, não exclui a metafísica. – A metafísica, treplica o doutorando, não existe mais, Sr. Doutor; se não sabia, saiba. – Não sabia, retruca este. – Pois vá estudar e aprender para saber que a metafísica está morta. – Foi o senhor que a matou? Pergunta-lhe então o Dr. Coelho Rodrigues. – Foi o progresso, foi a civilização, responde-lhe o bacharel Sílvio Romero, que, ato contínuo, se ergue, toma dos livros, que estavam sobre a mesa, e diz: – Não estou para aturar esta corja de ignorantes, que não sabem nada. E retira-se, vociferando por esta sala afora, donde não pudemos mais ouvi-lo".[7]
Tal reprovação, inclusive, ensejou a publicação por Tobias Barreto (em 1875) de um ensaio denominado “A metafísica deve ser considerada morta?”; no intuito de se contrapor à atitude de Coelho Rodrigues como examinador. Graziela Bacchi Hora e João Maurício Adeodato, autores de obras essenciais sobre o pensamento de Tobias Barreto, registram que o estilo agressivo de Tobias Barreto (e também de Silvio Romero)[8] fizeram-no “odiado pela congregação da Faculdade de Direito”.[9] Coelho Rodrigues, por outro lado, era muito admirado por seus pares na Faculdade de Direito do Recife. Ironicamente, o prédio da Faculdade de Direito do Recife é carinhosamente chamado de “Casa de Tobias” na atualidade. De Coelho Rodrigues, contudo, pouco se fala.

Nenhuma Constituição, código ou lei é gerada a partir do nada, nem muito menos obtém a sua matéria-prima do vazio. Eles sempre representam uma reflexão e uma forma de enfrentamento dos problemas do mundo, ou seja, apresentam-se como uma filosofia[1]. A Constituição Republicana de 1891, o Código Civil de 1916, o Código de Processo Civil de 1939, sem dúvida, expressam uma visão de mundo particular. Esta vontade de constituição, ou de codificação, entretanto, não está circunscrita a passagem do século XIX para o século XX, mas remete justamente à passagem do século XVIII para o século XIX. É nesse contexto que o modelo legalista, que se volta ao primado da lei enquanto vetor político e ideológico, comunicava — na virada do século XVIII para o século XIX — o quão necessária era a adoção de modernos códigos civil e criminal, o que ultrapassa bastante a mera enunciação de preceitos constitucionais em prol da limitação das prerrogativas absolutistas dos monarcas europeus; e guarda relação com o processo de secularização em andamento. Daí que, em Portugal e no Brasil, existirão discursos favoráveis à reforma na legislação[2]. Apesar da emancipação política e da Proclamação da República, o jurista brasileiro ainda precisava lidar com disposições normativas herdadas do período colonial, que constituíam um complexo “cipoal legislativo”. As Ordenações do Reino de Portugal, por exemplo, como demonstra Ignacio Maria Poveda Velasco em clássico estudo sobre o tema, vigeram entre nós até o advento do Código Civil de 1916 e, em Portugal, até o Código Civil de 1867. Nas palavras do professor titular do Departamento de Direito Civil da USP e líder da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo: “Elas são, pois, o monumento legislativo com maior vigência, tanto em Portugal quanto em nosso país”[3]. O Código Civil serviria justamente para pôr fim a essa confusão, pois seria dotado de um texto claro e conciso, capaz de ser compreendido com mais facilidade. A tarefa de traduzir aquele “dialecto mixto”, de tornar o Direito Civil inteligível, caberá inicialmente a Coelho Rodrigues a partir da República. A fim de se afastar da agitação da atividade política e da advocacia, Coelho Rodrigues resolveu fazer este trabalho de formulação do projeto na Suíça e o entregou ao governo em 1893[4]. O contrato firmado entre Coelho Rodrigues e o governo à época concedia apenas três anos para a conclusão do projeto. Entregue o projeto em 1893, ele foi pomposamente rechaçado à época do governo de Floriano Peixoto[5]. De acordo com Spencer Vampré, a rejeição do projeto pelo governo de Floriano Peixoto tem um componente político: o governo estava temporariamente interessado em apoiar o projeto de Felício dos Santos, que havia obtido o patrocínio de Saldanha Marinho[6]. A rejeição do projeto pelo Poder Executivo levou Coelho Rodrigues a apresentá-lo diretamente ao Poder Legislativo. Clóvis Bevilaqua assinalou à época que:
O senado já deu parecer favorável a respeito do projecto Coelho Rodrigues, porém mandando-o submetter á revisão de uma commissão de juristas- Si a procrastinação trouxer maior perfeição que seja bem acolhida, mas si fôr para desfazer, ainda uma vez, esperanças, já arraigadas de obtermos, afinal, um código civil digno de nós, devemos lastimal-a[7].
Outra testemunha dos fatos à época assinala que essa provocação de Coelho Rodrigues para que o Senado pressionasse o governo não produziu bons frutos; o que fez com que ele chegasse “até às portas dos tribunais, em memorável ação que propôs contra a União, sem resultado, aliás”[8]. O registro feito por Clóvis Bevilaqua ocorreu em um momento que antecede a sua contratação para fazer o Projeto de Código Civil. Poucos anos depois, já na posição de projetista do Código Civil, assinala o seu elogio ao projeto apresentado por Coelho Rodrigues, após tecer críticas aos projetos de Nabuco de Araújo e de Felício dos Santos. Segundo Clóvis Bevilaqua, Coelho Rodrigues teria sido mais feliz na escolha de seus referenciais teóricos, pois estaria mais atualizado em relação ao panorama legislativo e doutrinário; mas, apesar disso, o projeto não obteve a aprovação das autoridades competentes[9]. Coelho Rodrigues, assim como Teixeira de Freitas, também era um romanista e foi influenciado pela Pandectística alemã[10]. O seu Projeto de Código Civil também era estruturado em uma parte geral e em uma parte especial, o que evidencia a sua concepção sistemática de Direito Civil. Chegou a traduzir as Institutas de Justiniano para o português, obra publicada em dois volumes (o primeiro em 1879, e o segundo em 1881) sob o título: Institutas do Imperador Justiniano vertidas do latim para o português com perto de cincoenta notas extraídas do ‘Corpus Juris’ e um appendice contendo a integra do texto e da tradução das Novellas 118 e 127[11]. A precisão conceitual e o caráter sistemático do seu Projeto de Código Civil, frutos da influência da civilística alemã, renderam a Coelho Rodrigues referências elogiosas de Spencer Vampré e Clóvis Bevilaqua. O primeiro, professor da Faculdade de Direito de São Paulo, afirma que Coelho Rodrigues era detentor das mais “promissoras credenciaes” para a realização da tarefa da redação do Código Civil[12]. Já Clóvis Bevilaqua confessa que desejava vincular o seu trabalho ao Esboço de Teixeira de Freitas e ao Projecto do “Dr. Coelho Rodrigues”. Afirma também que retirou mais contribuições do Projecto de Coelho Rodrigues do que do Esboço de Teixeira de Freitas para a elaboração de seu próprio Projeto de Código Civil[13]. A escolha de Coelho Rodrigues para a função de projetista do Código Civil também foi uma dura traição aos republicanos convictos. Escravagista e monarquista, o “súdito fiel” Coelho Rodrigues não parecia ser a pessoa mais alinhada com os ideais de um regime que pretendia ser a antítese de tudo isso.